Finalmente chegou. Era preciso galgar a pé o quilómetro que o separava de casa. O alvoroço coexistia com uma sensação de calma, como se a simples decisão de mudar de vida lhe eliminasse os anos de stress acumulado. Mesmo que tivesse decidido não pensar na experiência que vivenciara, não podia apagá-la como se fosse o traço de um lápis que se elimina com o simples passar da borracha. Ainda não decidira se contaria à Rosa. Era difícil de explicar e de acreditar. Poderia até pensar que tinha enlouquecido... O melhor era calar-se, por enquanto. Depois se veria. No final da curva, a sua casa apareceu. Uma casa pequena, de pedra, enquadrada por hortenses, as flores preferidas de Rosa. À frente da casa estendia-se a horta bem cuidada. Pela primeira vez olhou as portadas com olhos de ver. Precisavam de uma pintura. Já não iria adiar mais essa tarefa. Teria muito tempo para isso. Abriu o portão. Entrou em casa sem fazer barulho, antegozando o ar estupefacto da mulher. Deu a volta à casa, sem a encontrar. Da janela da cozinha viu-a nas traseiras, pendurando a roupa que a máquina ainda quente acabara de lavar. No rosto desgastado da mulher liam-se os últimos quinze anos de depressões provocadas por tentativas frustradas de engravidar. A medicação tinha-lhe deformado o corpo elegante que o vestido de noiva cingira no dia do casamento. José sabia-lhe o olhar sempre ensombrado por uma nuvem de tristeza, mesmo quando se ria. E ele não tivera paciência para entender. Muitas vezes a deixara sozinha entregue àquela dor silenciosa e fora afogar a dor que era comum, no café do bairro. Uma dor que cada um procurava curar de costas um para o outro, perdidos em gestos e olhares desencontrados. Pela primeira vez reconhecia o egoísmo que a atitude de se afastar, deixando-a sozinha a lidar com a ausência de risos de criança, podia comportar. Sempre apaziguara a sua consciência dizendo de si para si “que eram coisas de mulheres”… José sentiu uma ternura infinita pela sua companheira. Aproximou-se e resolveu chamar por ela, para a não assustar.
— Rosa! Cheguei!
O rosto de Rosa voltou-se para ele. Triste, com sempre.
— Já chegaste?! Mas tinhas dito que só vinhas no sábado! Aconteceu alguma coisa?
Enquanto dizia estas palavras, levantou a cabeça, para trocar com o marido os dois beijos de boas-vindas habituais.
José puxou-a para si, olhou-a nos olhos até à alma. Disse então:
— Sabes que estás linda?
— Eu?! — O tom de incredulidade foi acompanhado por uma passagem das mãos pelos cabelos, tentando repor no seu lugar uma repa teimosa que lhe descaía sobre o rosto, e um sorriso tímido. — O que tens? Nunca me viste? — perguntou, rindo-se. Desde há muitos anos que se desabituara destes mimos do marido, e sentia-se até um pouco desconfortável com esta atenção.
— Olha, hoje vamos jantar fora e depois vamos dançar. Que dizes?
— Que não deves estar bom da cabeça!
José pegou-lhe nas mãos. Depois insistiu.
— Rosa, olha para mim. Para os meus olhos. De agora em diante vou falar contigo sempre de olhos nos olhos. Não estou a brincar. Estou a fazer-te um convite sério. Põe um vestido bonito e vamos sair.
Um sorriso lindo iluminou o rosto de Rosa. Ainda contrapôs:
— Mas…Tu não gostas de dançar…
— Mas gosta a minha querida mulher…
Rosa quebrou as suas resistências, abraçou o marido e, como uma criança, bateu as palmas:
— Ai que bom! Ai que bom! Mas… vestido!... Não tenho vestido! …
— Claro que tens! Aquele que comprámos para a festa da Daniela…
O sorriso de Rosa morreu-lhe nos lábios. José percebeu o esmorecimento da mulher.
Aquele vestido nunca o chegara a usar…Compraram-no com um grande entusiasmo para o casamento da Daniela, a sobrinha que casara em Lisboa numa família muito “bem”. Mas ele embebedara-se na véspera, e o vestido ficou guardado no baú durante anos, sem nunca ter chegado a oportunidade de ser usado…
— Desculpa, Rosa! Eu vou mudar! Aliás, já estou mudado!
Rosa afastou com as mãos esses pensamentos intrusivos e, voltando ao ar gaiato, agora reconquistado, decidiu:
— Vou buscá-lo! Tenho que o pôr a arejar antes de o passar a ferro. E ver se me serve!
Os olhos de José seguiram a mulher até ela desaparecer no interior da casa. Olhou então para dentro de si, convocando os estranhos acontecimentos daquele dia, daquele exacto momento, daquela fracção de segundo, em que José tomou uma decisão. A sua vida cheia de rotinas entediantes, a sua vida cinzenta, de trabalho duro, de um bom salário cheio de horas extraordinárias sem dias para o gastar…essa vida sem sentido, ia acabar…
Aos dias seguiram-se os meses, os anos, sem que nada de verdadeiramente importante o fizesse sentir que a vida valia a pena ser vivida…Os quinze anos de casado não lhe trouxeram os filhos por que ansiara…Dentro de pouco tempo estaria velho, a coluna desfeita pelas longas horas de condução, e a vida por viver…
Naquele dia, naquele exacto momento, naquela fracção de segundo em que adormecera ao volante do camião de longo curso que durante anos fora a sua casa, tomou a suprema decisão de comandar a sua vida.
Naquele dia, naquele exacto momento, naquela fracção de segundo em que fechara os olhos, embatera violentamente contra outro camião, sendo projectado pelo ar e esmagado contra o asfalto, vira-se a si próprio espectador da sua desgraça: arrastado num turbilhão de cenas passadas, a esbracejar e a escorregar, sugado por um sorvedouro gigante em forma de cone de névoa… e vira o sorriso triste da mulher…e desejara que tudo tivesse sido diferente… Subitamente, como num filme em rewind,, encontrou-se de novo sentado ao volante do seu Mercedes-Benz e o camião, o tal contra o qual embatera, passou calmamente no outro lado da estrada, saudando-o com o sinal de luzes.
Não teve dúvidas…Não fora um sonho…Fora um sinal. A Morte batera-lhe à porta, tragara-o e cuspira-o, como alguém que, por engano, prova algo que detesta. Uma nova oportunidade. Não sabe porquê. Mas não a ia desperdiçar, nem perder muito tempo a esmiuçar as razões…Chegara a altura de tomar o seu destino nas suas próprias mãos, e encetar uma nova viagem. A partir daquele momento, uma nova vida o esperava…
Estacionou o camião na estrada, junto a uma paragem de camionetas de carreira. Ligou para a empresa, a explicar onde tinha deixado o camião, e a pedir que não contassem mais com ele. Fez sinal à camioneta que chegava e entrou. Sentiu um alívio enorme, como se o camião que acabara de abandonar na estrada, deixasse de lhe pesar nas costas. Sorriu ao imaginar o ar de surpresa da Rosa. Agora ia começar uma nova vida. Uma nova viagem. Uma longa viagem… Era pelo menos o que ele esperava…se não fosse para coser as pontas desalinhadas da sua vida, por que outro motivo ele tinha sido devolvido pela morte?
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Fora tão fácil fazê-la feliz! O ar maravilhado e incrédulo que lhe vira no rosto, quando se admirara ao espelho maquilhada pela irmã! A segurança com que ela caminhara nos saltos altos, como se nunca tivesse feito outra coisa…O vestido, o célebre vestido de trespasse, a que ela só precisara de mudar um botão, o jantar saboreado com vagar no restaurante com pista de dança, o brilho extasiado no seu olhar… A valsa que dançaram na praça, quando regressaram a casa, ternamente enlaçados, e que culminou com os aplausos dos vizinhos, que, longe de se zangarem por terem sido acordados, com eles festejaram o amor… A noite de louca paixão renascida que lhes incendiou os sentidos…
Já não se lembrava daquela maravilhosa sensação de apaziguamento, de terna felicidade…Na verdade, sentia-se leve, leve…como se o chão tivesse uns amortecedores, que lhe davam a sensação de caminhar nas nuvens…Deixara de sentir as dores nas costas, e a barriga pesada, embora ela continuasse lá, bem proeminente…
Deu um último retoque ao tabuleiro do pequeno-almoço, colocando uma rosa que colhera no jardim, ao lado da chávena da sua Rosa. Cuidadosamente, agarrou no tabuleiro e dirigiu-se ao quarto.
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Muito boa a tua escrita. E um belo conto. quantas viagens valem mesmo a pena?
ResponderEliminarBeijo
Obrigada pelo estímulo. Também me agrada ler-te.
ResponderEliminarRetribuo o beijo.
Delicioso =)
ResponderEliminarVou ter que passar aqui mais vezes, estou a ver que sim. ^^
(Obrigada pelas palavras =) )
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Seja bem-vinda.Fico feliz por gostar.
ResponderEliminarLindo. Adorei. Tocante, sem a menor das dúvidas.
ResponderEliminarObrigada, blue!É sempre um grande estímulo quando o que escrevemos encontra eco na alma dos que nos lêem.
ResponderEliminarSerá sempre bem-vinda a este cantinho!
Mas que sensibilidade, que magia...
ResponderEliminarFala a tua mana que está longe e te adora...
Nunca desistas de escrever assim...
Beijos
Estela
Obrigada,minha querida!
ResponderEliminarTambém tu possues em ti a mesma magia. basta que lhe dês espaço para emergir.
Um xi-coração.