"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A Fotografia

Esta fotografia salvou-me. Salvou-me, e assegurou ao Titó um lugar de destaque entre os fotógrafos nacionais, ao ganhar o concurso para que se candidatara. Lembro-me muito bem do dia em que foi tirada. Eu não teria mais de cinco anos, e foi o Titó, o filho da tia Marta, que a captou com uma caixa que colocou à frente da barriga, enquanto dizia: olha o passarinho! À caixa ele chamou Kodak. Com os dedos, penteou-me a franja de cabelos castanhos, sobranceira aos olhos negros e imensos onde cabiam todos os sonhos, todas as possibilidades, todas as incógnitas. É uma fotografia a preto e branco, mas sei que o meu casaco era vermelho. Pertencera à filha da patroa da minha tia, que não chegara a usá-lo, por ter aumentado de tamanho mais do que era esperado. A velha bateria onde está encaixado o varal para prender o cordão da roupa, fora resgatada pelo Zezito Tolo uns dias antes, de um camião enferrujado e abandonado na lixeira. Nesse dia o pátio estava liberto de roupa. As mulheres daquela ilha, tinham partido de manhã cedo para a ribeira com as suas trouxas e ainda não tinham voltado. Este era um bairro pobre dos subúrbios do Porto. A fotografia está gasta e amarrotada, tantas vezes olhei para ela, procurando o farol para resistir às vicissitudes da minha vida. Nunca me separei dela. Eu era uma miúda tímida, sonhadora, curiosa. Cresci entre os cordões de roupa que se cruzavam pelo pátio ladeado de casas velhas, degradadas, às quais todos os anos as chuvas arrancavam mais um bocado de reboco. Ano após ano, as manchas de humidade iam avançavam mais um pouco, desenhando nas paredes das casas um mapa irregular, mas de contornos caprichosos. Nem no verão o cheiro bolorento se descolava das paredes, da roupa, da pele. Alguns vidros das janelas iam sendo substituídos por pedaços de papelão grosseiramente recortados das caixas de cartão que pedinchávamos na mercearia. Os telhados eram remendados com chapas de zinco. Nos cordões, as roupas dos vizinhos, tal como as nossas vidas, entrelaçavam-se numa teia emaranhada.
Durante muito tempo, o meu mundo confinou-se ao espaço delimitado pelas casas, e eu sonhava com o dia em que poderia passar para além daquele pátio. De dia, ao olhar para o retalho do céu por onde voavam as andorinhas, desejava voar com elas para sair dali. De noite, olhava as estrelas e acreditava que elas eram habitadas por alguém que colhia os meus sonhos de liberdade. Não tinha com quem brincar, pois não havia crianças da minha idade. Os jovens que ali viviam, começavam a trabalhar mal acabavam a instrução primária, e alguns nem isso, e eu ficava sozinha. Os desenhos caprichosos que a humidade imprimia nas paredes daquelas casas, alimentavam o meu imaginário. Nessas manchas de humidade via eu rios, árvores, montanhas, animais, aves, crianças, homens e mulheres que se animavam nas histórias que eu construía. A minha tia, que me acolheu quando os meus pais morreram, e que me criou, pouca paciência tinha para os meus devaneios. Costumava dizer que eu lhe caíra nas mãos quando ela tinha idade para ser minha avó. Mas criou-me o melhor que soube, e sempre contou com a solidariedade dos vizinhos. Eram várias as famílias que ali viviam, com as desavenças, disputas e ciúmes normais, que não raras vezes ultrapassavam as paredes das casas de cada um e se estendiam pelo pátio comum, tornando de todos os conflitos, levando uns e outros a tomarem partido por quem lhes parecia. Havia zangas, ameaças, palavras azedas. Porém, se algum membro daquele agregado coletivo fosse de alguma maneira molestado por alguém exterior ao pátio, as causas passavam a ser defendidas com zelo e sangue, se preciso fosse, como se de uma única família se tratasse.
Olho a fotografia e parece-me impossível que sobre ela tenham decorrido cinquenta anos! Quantas mágoas…Quantas desilusões...Cantei e chorei, sofri e fiz sofrer, amei e fui amada, odiei e fui odiada. Vivi no luxo, viajei, fiz cruzeiros, atravessei o mundo, passaram pelos meus braços mais de mil homens, mas nenhum ficou. Nem eram para ficar. Não na vida que me escolheu e que eu decidi seguir. Não sei porque lhe chamam vida fácil. Fácil nunca foi. Cedo me apercebi que a instrução seria o passaporte que me remiria de uma vida de miséria, e aprendi a tirar partido do meu corpo, único bem que possuía. Começou pela necessidade de pagar os estudos na faculdade, e não mais parei. Nos momentos em que me sentia aviltada, desprezível, conspurcada, recorria a esta fotografia, fechava os olhos e sentia-me menina outra vez, pura e genuína, com todos os sonhos ainda por cumprir… Agora acabou. Retirei-me. Ganhei mais do que o suficiente para viver uma vida um pouco acima da média. Em caso de necessidade, posso sempre recorrer às minhas joias, às roupas de griffe…e aos direitos autorais do livro que contará a minha vida obscura e que será publicado em breve.

 De vários lugares no mundo, olhei as estrelas, o céu vasto, observei as andorinhas voando livremente, mas era sempre àquele hexágono de céu estreito e restrito da minha infância que eu voltava. Estranho paradoxo! Vendi-me para sair, e tanto desejei voltar! Mas jamais podemos voltar a banhar-nos nas mesmas águas do rio, não é assim? Aquele cantinho de casas degradadas que eu guardei no coração, já não existe. Deu lugar a um imponente imóvel de escritórios moderno, envidraçado. Resta-me a fotografia. 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Convivas inesperados

Pois olhai, eu cá, tenho muito respeitinho por essas coisas…Deixá-los lá estar sossegadinhos…Ná…Eu bem sei o que aconteceu aqui há uns anos, ainda era eu um rapazola … qualquer um dos rapazes está aí, que não me deixam mentir…eu seja ceguinho destes dois…Quereis saber?
Uma ocasião, eu e mais uma malta combinámos ir fazer um magusto. Tinha que ser num domingo, pois embora fôssemos todos solteiros, já trabalhávamos, e no duro, desde que deixáramos a escola. Todos nos lanifícios, ou na metalúrgica. Só o Zé Garrincha trabalhava com o pai, na arte de alfaiate. Era o único que conservava as mãos limpas, todo pimpão, sem ter que usar o fato-macaco. Mas o pior era conseguirmos num domingo, dispensa do namoro, pois a maioria de nós também já catrapiscava a sua pequena, e, está claro, não era fácil que, exatamente no dia em que costumávamos namorar, falhássemos ao encontro só para estarmos uns com os outros. Mas era o que nós queríamos: um dia só de rapaziada. Fizemos planos durante bastante tempo, e cada um lá resolveu o problema à sua maneira. Só o Zé Teimas, coitado, é que não conseguiu livrar-se do controlo da sua velha mãe, que o trazia debaixo de olho como se ele fosse um catraio e o André da Moleira não arranjou quem quisesse trocar com ele o turno na metalúrgica.
E chegou o domingo tão esperado. A escolha do local recaiu no Gemuro, além onde se ergue a capela da nossa Senhora da Guia. A nossa esperança era que não houvesse por lá muita gente, nem na capela, nem no cemitério. Queríamos paz e sossego, longe dos olhares curiosos. Por isso, em vez de sairmos todos juntos do povo, fomos chegando, a pouco e pouco, para não dar nas vistas. Pouco depois do almoço lá nos fomos escapando de casa, e por volta das 3 horas da tarde já lá estávamos os seis. Depois de juntarmos o que havíamos surripiado de casa, logo demos conta de que a comida era mais do que a que conseguiríamos comer. Mas estávamos decididos a ficar por ali até nos apetecer, e só ao fim da tarde contávamos regressar a casa. Tínhamos castanhas, dois garrafões de jeropiga, duas mantas, e o resultado do assalto clandestino às despensas e salgadeiras das nossas casas: as fêveras eram poucas, mas havia chouriças e bons nacos de toucinho e presunto, que era o que mais apreciávamos. Encarámo-nos felizes, e despreocupados. O Tó Figas trazia com ele a concertina e o realejo. Quando puxei do meu cavaquinho, o Chico da Santa logo lembrou que, antes da música, havia que tratar da fogueira. Era preciso acartar a caruma, e umas pinhas para atiçar o lume. E foi o que fizemos. Começámos a descer o monte, na galhofa.
— Ó Chico, tu gostas mesmo de mandar! Já meteste a Ilda na ordem? — perguntou, provocador, o Edmundo.
— Isso não é da tua conta, e a llda não é para aqui chamada! — vociferou, enraivecido, o Chico, enquanto dava dois passos ameaçadores em direção ao Edmundo.
— Então não combinámos que era um domingo só nosso? Se começamos a falar das conversadas, lá se vai a satisfação — conciliou o Tó Figas.…
— Oh! Oh! O caso é sério! A mim não se me dá de falar na minha Francisca! —  atalhou o Zé Garrincha..
— Tratos são tratos. Acabou-se! — insistiu de mau humor, o Chico da Santa.
Eu tratei de deitar água na fervura.
— Pronto, homem, não te enxofres! Não se fala de negócio de mulheres, acabou-se!
— Mas, então de que havemos nós de falar? — insistiu o Periquita.
Enquanto se estava nesta conversa, fomos amontoando a caruma e as pinhas nas mantas, que depois transportámos para o terreiro.
Acendemos a fogueira, tratámos das brasas, assámos as castanhas, as chouriças, as fêveras, e os garrafões foram passando de boca em boca. Cantámos, tocámos, contámos anedotas, falámos do nosso trabalho, e acabámos até por falar no assunto proibido. Depois de bem bebido, o Chico nem se importou, e tomou parte na conversa como os outros. Foi uma animação, e uma tarde bem passada. Teria sido perfeita, se não fosse o que veio a seguir…O Almiro da Volta estava já bastante tocado. O rapaz não aguentava a pinga. Era fraquito, nem a pinga, nem os cigarros…e a cabeça…Bom, adiante!...Chegou-se a hora de recolher, e nem queiram saber o que aconteceu. Tinha crescido muita comida…A fogueira ainda deitava fumo, e as castanhas que restaram estavam que nem tições. Mas havia ainda restos de chouriças e alguns nacos de toucinho. Começava a escurecer.
— Que se faz a esta comida?— perguntei — Alguém a quer levar?
— Eu não! Então vou levar as provas do assalto à salgadeira para casa? — recusou o Almiro.
— Eu também não!
— Nem eu!
O Tó Figas não disse nada, mas balançou a cabeça da esquerda para a direita.
— Bom! — concluiu o Zé Garrincha — Então fica cá o resto para aqueles que estão lá em cima!
Ao dizer isto, o Garrincha rodou o queixo apontando-o para o alto da colina onde se situava o cemitério .
Nessa altura ouviu-se um enorme estrondo. Com fragor, as portas de ferro do cemitério abriram-se de par em par. Ao mesmo tempo levantou-se um vento forte, a uivar e a enrolar dentro de um enorme remoinho tudo que encontrava à sua passagem. Sei que me agarrei ao tronco de uma árvore, para não ser sugado por aquela tromba de vento. A mesma sorte não teve o Zé. Vi-o ser engolido por uma girândola de ar e vento, e ser cuspido, ao cabo do que me pareceu uma eternidade, pela encosta do monte que conduzia ao povo. De dentro do cemitério, um cortejo de vultos negros, com capuzes bicudos, descia pelo monte abaixo, na nossa direção. Nem queirais saber: eu estava petrificado, sem me conseguir mexer. De súbito, senti uma incrível energia, e comecei a correr em direção ao local por onde o Zé fora atirado. Senti os meus companheiros a correrem atrás de mim, aos gritos. Todos nós rebolámos pela encosta, só parando numa zona em que o chão se aplanava. Olhámos uns para os outros, incrédulos e aterrados. O vento tinha amainado. Levantámo-nos, e continuámos a correr. Só parámos perto do povoado. Combinámos não contar nada, até nos voltarmos a juntar e pensarmos melhor no assunto. O Periquita desde sempre disse que não se lembrava de nada. O Almiro, como sabem, acabou por dar em...cá para mim… ele nunca foi muito forte do miolo… não aguentou, e… ficou pírulas…Os outros nunca quiseram falar no assunto. Não é nada que eu ande por aí a contar a qualquer um, mas… o que eu vos digo é que os mortos não gostam de ser importunados, ai isso é verdade verdadinha, tão certo como eu estar agora aqui …


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O sapo e a cotovia

Na minha mente cruzam-se excertos de narrativas de infância que se enredam e enovelam umas nas outras, e me assaltam constantemente, tantas vezes às horas e nas situações mais indiscretas. Vou adiando o confronto, por uma tendência inata para a procrastinação, uma preguiça que se vai instalando, e à qual não tenho forças para resistir. Quando finalmente cedo ao apelo e me sento para escrever, é porque uma dessas vozes se sobrepôs, e sei que me basta puxar o fio desse novelinho para a narrativa se ir desensarilhando… A voz que agora sobrevém das brumas da memória é a da minha tia-avó materna, que vivia connosco, terna figura indissociável da minha infância, que disseminou o meu mundo e o dos meus irmãos, de narrativas e de sonhos… Ouço a sua voz, contando a fábula da cotovia e do sapo. Nunca encontrei esta fábula em nenhum livro, e nunca a ouvi contar a ninguém. Nem sei se a reconheceria escrita, ou até narrada por outrem, de tal maneira a voz da minha tia, imitando e mimando as personagens se tornou parte integrante do corpo da história, sem a qual ela estará, para mim, mutilada.
Ó tia, conte lá a do sapo e da cotovia! pedíamos
Era uma vez um gato-montês…Queres que te conte outra vez?
Oh! Não! A do sapo e da cotovia! Vá lá!
Era uma vez um sapo e uma cotovia. Eram casados, e um dia foram fazer um passeio. Mas foram apanhados por uma tempestade, que durou três dias e tiveram que ficar abrigados numa árvore. (A voz dramática da tia, os seus gestos, os seus olhares, criavam o ambiente indispensável à visualização da história) Finalmente a tempestade parou e eles resolveram voltar para casa. Tinha chovido muito, os campos estavam alagados, as ribeiras e os riachos levavam muita água. E lá vão os dois, o sapo ( e aqui a voz da minha tia, ao pronunciar a palavra “sapo” faz a voz grossa, enche as bochechas de ar, e sopra as sílabas “ sa-po”, ao mesmo tempo que baloiça o corpo com a sílaba “sa-” para a esquerda, e com a “-po “ para a direita. Afasta os braços, e faz com eles uma roda larga à volta do seu corpo. Sem mais explicações, a personagem estava instalada à nossa frente, que víamos um sapo gordo, pesado, bonacheirão…) e a cotovia ( neste  ponto afina a voz como uma flauta, e dá pulinhos na cadeira. É uma cotovia leve e saltitante que os nossos olhos veem. E estes gestos irão acompanhar toda a narrativa, alternando-os à media que intervêm uma ou outra personagem.) Chegam à beira do riacho que têm que atravessar, porque a casa deles é do outro lado. Mas o riacho, que quando passaram para cá tinha pouca água, agora vai cheio. A cotovia, sempre a saltitar, a saltitar, levanta voo, e, num instante, está do outro lado. Mas o sapo… olha para a água, olha para lá do riacho, e não se decide a passar. A cotovia, do lado de lá, começa a encorajar o homem dela.
— Passa, sapo, passa! E a voz aflautada da minha tia que imita a cotovia, com os gestos respetivos, e os pulinhos na cadeira, recriam a narrativa.
 — Num posso! Num posso! — responde o sapo.
A cotovia começa a voar em redor do sapo, ora voando para lá, ora vindo colocar-se ao lado do seu companheiro.
— Passa, sapo, passa!
Bem, estão nisto algum tempo, passa, passa, num posso, num posso, até que o sapo, com todas as cautelas, lá se decide. Mas com tanto azar, que quando mete a pata, ela lhe escorrega, e ele vira-se, ficando de patas para o ar a estrebuchar no meio da água. E a corrente arrasta-o pelo riacho abaixo. A cotovia, ao ver aquilo, desabafa, aflita e chorosa:
— Ai sapo, que fico viúva!
Resposta do sapo:
— E dum belo rapaz, tocador de viola!

Ao ouvirmos esta história não conseguíamos conter as gargalhadas, e a pena que a sorte do pobre sapo nos pudesse despertar, era desviada pela imagem patética que conseguíamos visualizar, do sapo gordo de patas no ar, a responder ao choro da cotovia, com a voz soprada, grossa e compassada, que a tia lhe emprestava. 

domingo, 14 de julho de 2013

O bicho não estava mau...

A história que vos vou contar aconteceu mesmo. Aconteceu comigo, era eu um rapazito, acabadinho de fazer exame, e com distinção, se quereis saber. Nunca a contei a ninguém a não ser à minha mãe que Deus tem. E foi ela quem me aconselhou a manter o bico calado. Durante estes anos todos esta história coabitou comigo, e marcou a minha vida. Procurei esquecê-la, afogá-la no fundo da memória, mas parece que quanto mais me esforçava para a esquecer, mais ela procurava um escape, e parecia crescer como massa que se põe a levedar. Muitas foram as noites em que estas recordações assombraram o meu sono, e os pesadelos que me assaltavam, aterrorizaram a minha juventude. Quando deixei de lutar contra as memórias, também as minhas noites serenaram, e deixei de ter medo que eles viessem atrás de mim. Se tivessem essa intenção, tê-lo-iam feito logo, enquanto eu era pequeno, sem ninguém que me defendesse, mas nunca me aborreceram nem falaram no assunto. Sabiam, certamente, que o terror de alguma represália me manteria calado. Já passaram muitos anos. De todos os que participaram nesta história só eu estou vivo…Já não há perigo, nem para mim, nem para eles. Todos eles já prestaram contas ao Criador, e alguns deles, senão todos, Deus me perdoe, estarão a arder nas profundezas do inferno. Calma, não me apressem, eu sei que já não corro perigo, mas ainda sinto um arrepio na espinha, ao lembrar-me…Sei bem que não há motivos para isso, mas…foram muitos anos, a guardar este segredo. E se hoje me atrevo a desvendá-lo, foi porque andei muito tempo a matutar nisso…a convencer-me, a ganhar coragem…Não, não estou a exagerar, acreditem no que vos digo…E, apesar dos anos, não me esqueci de nenhum pormenor. Parece que, quanto mais o tempo passa, mais eles se avivam na minha memória.
O velho pegou no copo de vinho, olhou em volta, e emborcou-o de uma só vez. O som do líquido a escorrer pela goela, enquanto a maçã-de-adão subia e descia, era o único som que se ouvia. Sobre a mesa redonda, as garrafas de vinho, algumas já vazias, os copos tingidos de roxo, a assadeira de barro onde ainda ardia o baraço da chouriça, a broa de milho já no fim, eram fracamente alumiados pela luz bruxuleante do candeeiro de petróleo. O fumo dos cigarros serpenteava em volutas caprichosas. As sombras iam crescendo como um balão que se enche, ocupavam todos os recantos da loja, agigantavam-se ao redor dos quatro homens. O professor, o Joaquim da venda e o Leonel boticário não despregavam os olhos do velho Mateus.Com aquela introdução Mateus havia conseguido captar a atenção de todos eles. Todas as quartas-feiras eles se juntavam na loja do Joaquim, depois do expediente, para contarem as suas histórias ou debaterem algum tema de interesse. Joaquim fechava a porta da mercearia mal o sino da torre batia as sete badaladas, e eles ajeitavam-se para ali passarem o serão. As mulheres sabiam que naquele dia escusavam de esperar os maridos para jantar. Só a Mateus ninguém o esperava. Era o único idoso e o único que nunca casara, muito embora se lhe conhecessem algumas inclinações amorosas nunca assumidas nem por ele, nem por elas. Nesta quarta-feira, era a sua vez de iniciar a reunião contando uma história.
Na braseira enlanguesciam as brasas, que o professor ia atiçando nervosamente.
Mateus continuava: Pois quando fiz o exame, a minha saudosa mãe foi pedir ao almocreve Pero Piçarro, para me levar com ele e o seu bando, para eu ir aprendendo o ofício. Os almocreves naquele tempo ganhavam muito dinheiro, e, se bem que estivessem sempre sujeitos a assaltos dos amigos do alheio, a fama e a experiência que Piçarro havia consolidado, deixavam a minha mãe tranquila. E num dia combinado, eu lá parti com a caravana deles. Os homens iam todos montados nas suas mulas e machos, e dos alforges de couro ensebado sobressaiam as coronhas das espingardas. Nem parecia que partiam por quase um mês, tal era a boa-disposição que os animava. Contavam graçolas, cantavam, riam-se. Eu ia sentado na carroça das mercadorias, amuado e envergonhado por me terem visto agarrado à minha mãe, soluçando desalmadamente, perante a perspetiva da separação. Nunca a tinha deixado, e ela sempre me acarinhou, quem sabe se também para me compensar da falta de pai, que, como sabem, não conheci. Um deles, o Zé Manco, meteu-se comigo por eu ir choroso e abatido como uma menina, e eu ia ressentido com ele… Mas lá íamos progredindo vagarosamente pelas estreitas veredas, o corpo sujeito aos solavancos que os acidentes do caminho comandavam. Estávamos quase a chegar à Malhada das Vacas, quando me apercebi que eles se tinham calado. Espreitei, e vi que tinham parado, e tirado os chapéus. Parecia que estavam a rezar. E não é que estavam mesmo? Dois ou três minutos depois, benzeram-se, puseram os chapéus, levantaram a cabeça, e retomaram o caminho. E o que eu percebi, é que estavam zangados…Um deles, de quem já me esqueci do nome, falava muito alto, e dizia que o havia de varar com dois tiros no meio dos cornos, como ele tinha feito ao Almiro Pardo, e ela havia de ter a mesma sorte…Só mais tarde percebi de quem falavam, quando contei à minha mãe e ela me convenceu a ficar calado para o resto da minha vida. Já vai, já vai…não tenham pressa, já lá chego…
O Pero Piçarro, que era o chefe do grupo, censurou-o, disse-lhe que tivesse calma, que ele fervia em pouca água, que a vingança era um prato que se servia frio…
Andámos aí uns cem metros, quando o Ramires Murtinheira, que mal tinha falado, disse:
 — Pois então, Piçarro, espero que o prato esteja bem frio, porque o alarve está a caminhar para as tuas mãos.
No caminho de baixo avistava-se um cavaleiro. Obrigatoriamente, ele tinha que passar pelo mesmo caminho que seguíamos.
— Aí está a resposta às minhas orações — murmurou o que chamavam de Padre.
Imediatamente os homens saltaram das montadas, conduziram os animais e a carroça para fora do caminho, e pegaram nas armas. Agacharam-se atrás das moitas, e esperaram, silenciosamente. Não tardou muito que se não aproximasse uma mula ruça, em cima da qual se sustinha um homem que eu conhecia, mas de quem não sabia o nome. Avançavam lentamente. O homem, grande e pesado, com o chapéu descaído para os olhos, parecia dormitar; a mula, derreada sob aquele peso exagerado parecia ainda mais velha, e, tanto montada como cavaleiro, vinham cobertos de pó e aparentavam um grande cansaço. Mal ele chegou perto, os meus companheiros saíram dos esconderijos, e apareceram-lhe à frente, de espingardas apontadas.
— Lembras-te do que fizeste aqui ao Almiro Pardo?— perguntou o Pero Piçarro.
O homem teve um sobressalto, e agilmente lançou mão da sua arma, com uma destreza imprevisível para alguém com aquela compleição anafada.
— Eu se fosse a ti, nem sequer tentava. Já contaste as armas que tens apontadas às trombas?
Nunca me esqueci do ar apavorado que cobriu o homem! Tenho a certeza que ele soube que ia morrer.
— Lembras-te, ou já te esqueceste?
 — Lem…lembro…
 — E tens alguma coisa a dizer em tua defesa?
— Eu…ele…ele batia-lhe, e…
— E se batia, era lá com ele…entre marido e mulher não metas a colher! — interrompeu o Laginha.
 — Se é só isso que tens a dizer, faz as tuas  orações…Embora tenha a certeza de que te não vão servir para nada…há de ser o mafarrico quem vai tratar da tua alma, se a tiveres — avisou o Padre.
Estas observações foram recebidas com gargalhadas por todos, exceto pelo cavaleiro, que estava pálido, e tremia. Na poeira das calças começou a alastrar uma mancha escura.
Eu estava aterrado, escondido atrás da moita, mas sem conseguir desviar o olhar. O bando parecia ter-se esquecido da minha presença. Lembro-me de que comecei a rezar, eu também. De repente, uma metralhada de tiros fere os ares, quase em uníssono. Fechei os olhos com força, e cravei as unhas nas palmas das mãos. Ouço então um baque surdo, pesado, como se um saco de batatas escorregasse até ao chão, ao mesmo tempo que me entra pelas narinas o cheiro a pólvora misturado com poeira. Logo a seguir, a voz de Zé Manco, à qual se associam as gargalhadas dos companheiros:
 — O bicho não estava mau!
É neste momento que eu desato a correr, a correr, a correr, e só paro em casa.
Mateus parece despertar. A história que acabou de narrar deixou-o sem forças. Contou quase como se estivesse sozinho, sem fitar os seus ouvintes. Só agora volta a passear o olhar pelos companheiros, que não se atrevem a falar.
Quando cheguei a casa, eu quase desmaiava de pavor e exaustão. Depois de beber um beirito de água que a minha mãe colocou à minha frente, e me ter acalmado, contei-lhe aquilo a que assistira. Notei que ela ficou muito aflita e pediu-me que esquecesse aquela história. Devia fazer de conta que nunca tinha acontecido, e que desconhecia completamente aquele assunto. Pois foi isso que eu fiz, professor, até agora. Mas antes eu quis saber quem era o tal Almiro Pardo. Lembro-me que a minha mãe ficou perturbada, respirou fundo, e explicou-me que esse Almiro fazia parte do grupo dos almocreves do Pero Piçarro. Fora assassinado perto da Malhada, e constava que o Abel da Várzea o tinha matado para lhe ficar com a mulher, mas não havia provas. Pois dizes bem, Joaquim, foi um ajuste contas! Qual quê ! O corpo nunca foi encontrado, e eles trataram de espalhar o boato de que ele teria fugido para o Brasil! Eu ia lá abrir a boca, professor! Quem tem cu tem medo! A minha santa mãe fez-me jurar, pela bíblia sagrada, que nunca diria nada! E o prometido é devido.
— Pois então, bebamos mais um copo! — propôs o Joaquim.
O vinho rodou pelos copos de todos. A voz de Mateus continuou ainda a ressoar depois de se ter calado.No ar sentia-se um ambiente pesado, como se a evocação daquela história tivesse convocado as almas dos seus intervenientes. E nessa noite, depois da rodada,os quatro companheiros da venda  foram desertando, sem quererem saber de mais conversa.

terça-feira, 9 de julho de 2013

O Castigo

António passeava-se pela sua vinha, orgulhoso. Aquela vinha era a luz dos seus olhos. Ele bem via os olhares cobiçosos que os outros camponeses lançavam aos cachos negros, redondos, carnudos… Cuidara dela com desvelo, vira-a brotar da terra, vira-a crescer, vira-a tornar-se frondosa. Vigiara dia-a-dia as videiras, combatera as pragas e as doenças…Mas fora abençoado. O vinho prometia…
Já lá iam cinco anos que ele e o cunhado tinham tomado de renda a quinta do sr. Manuel da Ponte. Entenderam-se com o ricaço, e dividiram a terra ao meio, tomando cada um conta da sua parte. Era uma terra farta, abastada de água, e devolvia-lhes a dedicação, presenteando-os com os frutos que agasalhava no seu seio. Também a irmã e o cunhado se mostravam satisfeitos e igualmente gratos pela terra fértil. Amavam a terra e não fugiam ao trabalho. Se bem que a irmã, depois da última gravidez, não fosse mais a mesma. Andava esquisita, e tristonha…Coitada! Seis pimpolhos, todos seguidos, era uma carga de trabalhos…Os miúdos eram saudáveis, e lá se iam criando…O mais velho até já ia ajudando o pai, porque a irmã, ultimamente…pouco prestava para o duro trabalho do campo. Sempre fora uma mulher trabalhadeira, mas agora… Puxava-lhe para a cama, ficava a olhar o vazio, macambúzia, queixava-se de grandes dores de cabeça, de não ter forças para nada… Quantas vezes Inácio, o marido, fora apanhá-la de enxada na mão, parada, e tivera ele de acabar o trabalho que lhe estava a ela destinado. A Delmira, a sua mulher, já por mais de uma vez fora buscar as crianças para comeram com eles. Ele não se importava. Gostava dos sobrinhos. Eram todos família, e quando as coisas não corriam pelo melhor, para onde é que uma pessoa se havia de virar senão para a família? Sopa nunca faltara na mesa. E aquilo havia de passar. A Delmira e a Clotilde lá se entendiam. A mulher pouco abria o jogo, mas ainda foi dizendo que a irmã andava cismada, que se levantava de noite, que ouvia chamarem por ela…Não ligara muito… Coisas de mulheres, decerto…
António deu a volta à vinha, sentindo crescer dentro de si um misto de amor, orgulho e gratidão. Subitamente deteve-se. Alguém lhe andava a roubar os cachos! Olá!..não se tratava de debicar um bago aqui ou ali, mas de cortar cachos e cachos inteiros. Ah! Iria apanhar o bandido, ou não se chamasse António Justo!...
 Na noite a seguir a esta descoberta, armou-se de um varapau e pôs-se à coca, pensando apanhar o ladrão com a boca na botija. Mas a dor que se lhe ferrara nas cruzes, depressa o demoveu da vigília. António magicou, magicou, à procura de uma solução, até que teve um rasgo de iluminação. O ladrão iria pôr-se a descoberto, vítima da sua própria gula.
Foi à arrecadação onde guardava as alfaias, os tratamentos das vinhas, os produtos de limpeza e desinfeção das cubas. Retirou o frasco da prateleira onde guardava o ácido tartárico. Desta vez, o ácido iria servir para pregar uma valente partida ao ladrão das uvas. O malandro iria dali sair com as calças na mão. Ou nem sairia… A disenteria que o ácido lhe ia provocar, não o deixaria ir muito longe. António sorriu para dentro. Com um balde na mão, a solução preparada e uma trincha, partiu para a vinha.
+++++++
Os sinos dobravam a finados. Ao aproximar-se a hora, houve alguma agitação na sala. O terço interrompeu-se, quando os gritos da ti Laurentina, vestida de preto dos pés à cabeça, atravessaram o compartimento. A mulher debruçou-se sobre o caixão e abraçou o cadáver magro, chupado de carnes, enquanto gritava:
 — Ai minha filha, minha rica filha, que tão cedo me deixaste! O que vai ser destes meninos?...
Duas mulheres acudiram de imediato, na tentativa vã de a acalmarem. Os gritos continuaram, como pano de fundo.
Inácio arrastou-se para junto do caixão, pegou nos filhos, um por um, para que se despedissem da mãe. A dor estava-lhe estampada no rosto, no porte derrotado. Depois inclinou-se sobre o cadáver, depositando um beijo, o último beijo, sobre os lábios pálidos e sem vida da mulher. A pele seca e encarquilhada de Clotilde, denunciava a desidratação extrema provocada pela diarreia que o médico não foi capaz de conter. Quando, após a prédica fúnebre do padre, a urna foi fechada, do fundo da sala explodiram os soluços ruidosos e descontrolados de António, como se o rastilho incendiado se tivesse esgotado.
Muitos se interrogaram por que pedira ele desculpas à irmã, mas o que a todos impressionou, e ninguém suspeitava, era que ele gostasse tanto dela.


sexta-feira, 31 de maio de 2013

Ainda se fosse um tostão...

No grande armário de castanho da cozinha, guardava Eulália as moedas que lhe serviriam para os gastos da semana. A velha caixa de lata ferrugenta, que antigamente servira para o chá, era agora a depositária das moedas. Moedas contadas, recontadas, regateadas, esticadas, que lhe permitiam ir governando a casa. Era uma mulher poupada, e bem sabia que essa, era uma das muitas qualidades que o seu homem, emigrado no Brasil, tanto prezava.
Certo dia, o sobressalto e a incredulidade tomaram conta dela. Contou, recontou, e tornou a contar…Seria possível? Faltavam 25 tostões!
A sua voz severa e alarmada atravessou a casa. Imediatamente lhe ocorreu que só poderia ter sido o Tó, rapaz em plena adolescência, constantemente tentado pelas más companhias, os cigarros, o jogo…era preciso mão de ferro…
— Ó  Tó, foste tu que me tiraste daqui 25 tostões?
O rapaz acorreu, espavorido.
— Eu?! Eu não, minha mãe!
— Ah! Desgraçado, que me metes nos pinheiros antes do tempo! Quem mais poderia ter sido?
— O que foi minha mãe? O que foi? — acode atarantada Adelina, a filha mais velha, jovem desempenada e cobiçada pelos rapazes da terra, e a Laura, a benjamim, com quatro anos a caminho dos cinco.
Eulália já agarrara no pau de marmeleiro com que moldava as vontades e os caprichos aos filhos, e já o fazia silvar no ar, descarregando a fúria e a raiva acumulados contra a vida.
— Foi este…. desgraçado! Ainda se fosse …um tostão, mas logo vinte e cinco tostões!...Pensa que o vou roubar!... O vosso pai lá tão longe, para vos criar…
—  Dê-lhe, dê-lhe  para baixo, minha mãe! — encorajava Adelina.
A pequenita Laura olhava para aquela cena, sem perceber muito bem o que se passava. E nervosamente, repetia:
— Ainda se fosse um tostão, mas logo 25 tostões!...
Tó lamuriava-se, chorava como criança que ainda não deixara de ser, a boca escancarada, o corpo aos sacões dos soluços, as lágrimas correndo escuras da poeira. Chorava como choram os sedentos de justiça, enquanto clamava a sua inocência.
— Bata, bata, minha mãe! Não fui eu, minha mãe, não fui eu!
Um rebate, um instinto, o cansaço, fizeram-na desistir da persecução deste castigo exemplar. Deixou-se cair sobre um mocho, atirou o pau para um canto da cozinha, e, com a cabeça entre as mãos, ia murmurando:
— Malandro…malandro…malandro…
Tó, acocorado a um canto, repetia a lengalenga:
— Não… fui eu…não fui…eu…hã…hã…hã…não…fui eu….
Ao outro dia, de manhã bem cedo, começou Adelina a juntar a roupa que iria lavar na ribeira. Do bolso do bibe de Laura, que ainda dormia, rolou, reluzente e acusadora, uma  moeda de 25 tostões. Adelina largou a roupa no meio do chão, e correu para a mãe, mostrando a moeda tão cobiçada:
— Olhe, minha mãe, olhe! O Tó tinha razão! Não foi ele que roubou o dinheiro! Foi a Laura!
Eulália fitava, atónita, a filha mais velha!
— Ai a espertinha! Vê, minha mãe! E ainda se pôs a dizer: Ainda se fosse um tostão! Mas logo vinte e cinco tostões!
Confrontada, a pequenita, mal olhou para a moeda que a irmã lhe estendia, correu para ela, reivindicando a sua posse:
— É minha! A medalha é minha!
— É tua, nada! O dinheiro é da mãe! E o Tó apanhou por tua culpa!
Então aquela medalha tão bonita é que tinha sido a razão de tanto barulho! Tinha um barco e brilhava! Apanhara-a do chão da cozinha, guardara-a no bolso do bibe, e apertava-a na mão, enquanto o irmão era castigado. Tinha um barco e brilhava! Era o seu tesouro!
A partir desta altura, esta história passou a circular pelos familiares, amigos e conhecidos da família, como prova da esperteza da garota. Frequentemente Laura era acolhida com a frase:
 — Ainda se fosse um tostão, mas logo 25 tostões! …

Porém, nunca ninguém suspeitou do desconforto que esta história trazia à garota, que aumentava à medida que ela crescia. Ela sabia quanto fora inocente, e repudiava que tomassem como esperteza, a inocência infantil  que custara um severo castigo ao irmão. Hoje, muitos dos que se poderiam lembrar desta história, já não estão vivos. Mas Laura ainda lhe sente o amargor, setenta e seis anos passados.      

domingo, 5 de maio de 2013

Mulher-criança


Chamo-me Rita, tenho 14 anos e sou empregada doméstica. Ainda não tenho idade para trabalhar, mas a minha patroa ensinou-me a nunca dizer que eu trabalho para ela. Eu só tenho que dizer que estou de visita, se alguém me perguntar. Claro que eu ainda tinha de andar a estudar, mas a escola é uma “seca”. Chumbei no segundo ano, no quarto, e não acabei o sexto. A professora de Português apanhou-me de ponta e eu nunca mais lá pus os pés. A minha mãe não se importa. O que ela quer é o dinheirinho ao fim do mês que a minha patroa lhe paga. Ela diz que até os doutores estão desempregados, e é verdade…e eu tenho emprego. Da escola só tenho saudades da Beta, que era a minha melhor amiga. Foi ela que me ensinou a nunca tirar as cuecas quando íamos com os rapazes para trás da escola, quando estávamos à espera da hora para apanhar o autocarro. O Tony era estranho, já andava no nono ano, mas gostava de me enfiar a língua na boca quando me beijava…assim…linguado, sabe o que é? E eu até gostava. Ele apalpava-me toda e agarrava-me na mão para lhe apalpar a…ai como é que se diz…em Ciências aprendemos o nome …pénis…isso…e era assim…duro, mas nunca deixei fazer mais nada…nunca nenhum homem há de fazer pouco de mim, como o meu pai fez da minha mãe…a gente se não tirar as cuecas, e se não deixar…pronto…assim…fazer mesmo sexo…não há problema…Eu gosto de estar na casa onde estou. A patroa é simpática, e trata-me bem. No dia em que eu cheguei, já vai fazer um ano, ela deu-me um estojo de toilette da Hello Kitty, que eu adoro… com tudo novo lá dentro, só para mim: um sabonete, um champô e amaciador, uma escova para o cabelo, um gel de banho, uma pasta e uma escova de dentes, um desodorizante…tudo novinho, a estrear…disse para deitar o velho para o lixo…olha o velho…nunca tinha tido estojo de toilete, e o sabão azul é que servia para tudo… Disse-me que aquilo era para usar todos os dias, antes de me deitar…Ah! Também tenho uma casa de banho só para mim…É na cave. Adoro deitar-me com aqueles cheirinhos todos no corpo e nos cabelos… não custa nada! É só rodar aquele botão, e lá vem a água quentinha, prontinha…acredite, que é a melhor parte do dia…da noite, quero dizer…pois…do dia e da noite.
 Como à mesa com os meus patrões, porque tenho de dar a comida ao Nuno, que tem dois anos. Eu tenho muito jeito para tratar dele. Até já lhe dei banho! Gosto de brincar com ele, e com os brinquedos. Tem tantos!... Ele é muito fofinho, e ri-se todo quando chego ao pé dele… Cá para mim, já gosta mais de mim do que da mãe dele. Só não gosto de cozinhar. Já deixei queimar o almoço duas vezes, porque fui só espreitar a telenovela, e esqueci-me que tinha o tacho no fogão. Sim, sou a única empregada. Os meus patrões são ricos…acho eu…mas não são tão ricos como os das novelas, que têm empregados para tudo. O que é que eu estava a dizer?... Ah! Pois…Quando a patroa chegou, e viu o disparate que eu fiz, levantei logo a mão para ela não me bater na cara, esperei e…nada. A patroa disse-me apenas que tenho de ter mais cuidado, mas que ainda estou a aprender. Se fosse em minha casa, a minha mãe berrava-me o dia inteiro, e dava-me uma malha, que eu até andava de roda…
Aqui tenho um quarto só para mim, e até tenho lá uma televisão. A casa dos meus patrões é grande, e…sabe… até tem uma sala com as paredes cheias de livros até ao teto! A minha patroa já me emprestou uns para eu ler, mas não tenho paciência, dá-me logo o sono…Em minha casa…a bem dizer não é uma casa como deve ser…é um barracão de tijolos…nem portas tem!...Quer dizer, tem só a porta da rua. O meu padrasto é que a construiu, e está sempre a dizer que ainda há de ser uma casa como a dos ricos…mas ele gosta mais de copos do que de trabalhar…então…na minha casa só há uma sala grande, a cozinha e a casa de banho, que só tem retrete, e uma bacia para lavar a cara e as mãos…mas não há água canalizada, temos que a ir buscar ao poço.  No inverno fazemos uma fogueira lá fora, aquecemos a água em baldes de zinco e tomamos banho numa bacia grande. Dormimos todos na mesma sala, eu e os meus irmãos e há uma cortina a separar-nos da cama onde dorme a minha mãe e o meu padrasto. Eu detesto o meu padrasto. Ele tem a mania que é meu pai, mas não é. Só no papel. O meu pai verdadeiro não casou com a minha mãe. Quando soube que ela estava grávida de mim, abandonou-a e sempre disse que eu não sou filha dele. Mas o meu padrasto deu-me o nome no registo, para eu ser filha dele. Detesto-o. Quando se embebeda chama-me nomes feios, e diz que eu sou uma puta como todas as mulheres. Ele bate na minha mãe e nos meus irmãos, e, às vezes, tínhamos que fugir de noite, andar pelos montes, porque ele ia atrás de nós com uma faca e dizia que nos matava. Mas a minha mãe continua a viver com ele. Ela gosta mais dele do que de nós, que somos filhos dela. O meu irmão, que é mais novo do que eu quatro anos, diz que quando crescer o há de matar. É por isso que eu gosto de aqui estar. Não me importo. Quando vou aos fins-de-semana gosto de estar com os meus irmãos, e com a minha irmã, que ainda é pequenina. Mas só isso. Aqui ninguém berra comigo, e ninguém diz asneiras. E a minha patroa dá-me roupas dela e até me ensinou a fazer malha. E eu já fiz um casaco de malha que ela me ensinou a fazer. Pronto…acho que já não tenho mais nada para dizer…Então…gostou? Quanto é que me vai pagar? Como é que se vai chamar o livro onde vai pôr isso tudo? 

Nos olhos de minha mãe


E o outono vai avançando                                        
Legando pelo caminho                                             
Inefáveis traços da sua voragem                              
E descem tardes soturnas                                            
Veladas de rendilhadas neblinas
Vergando-se à sua passagem

Ainda se acendem sóis
Porém,                 
De manhãs primaveris                            
De outrora                                                
Nos olhos da minha mãe

E o outono vai tecendo
Nítida teia de seda
Onde já florescem douradas
Redondas pérolas de âmbar
Em sua tez delicadas.

Ainda rumorejam águas
Porém
Saltitando dos córregos
Da minha infância,
Nos olhos da minha mãe

E o outono vai tingindo
Seus cabelos de fios de prata
E em suas mãos de labor
Sobressaem já azuladas
Veias finas e diáfanas

Ainda cantam rouxinóis,
Porém,
Trinando nas tardes soalheiras
De então,
Nos olhos de minha mãe.

E o outono e a minha mãe
Em sintonia perfeita
Estreitam sua união.
Cobre-se de outono
A natureza
E treme o meu coração.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Ninhos


Acordo sobressaltada com os gritos das crianças. Tateio o interruptor, mas não há luz. Salto da cama. A sombra da cerejeira agiganta-se, ameaçadora, na parede do meu quarto. Às apalpadelas vou avançando pelo corredor, tão depressa quanto a escuridão me permite. A sapateira aparece-me à frente, barra-me o caminho, e eu dobro-me instintivamente pela cintura, enquanto um grito de dor se me escapa por entre os lábios. Contorno o móvel e avanço. Os gritos das crianças são mais urgentes, e denunciam terror. Grito-lhes, tentando acalmá-los. O meu filho mais velho costuma ter pesadelos que me obrigam a ir ter com ele, abraçá-lo e acordá-lo. Mas agora, o meu coração diz-me que não pode ser um pesadelo. Os gritos são de ambos, e vêm do quarto deles.
— A mamã está a ir! Calma!
É então que ouço três golpes surdos, e, logo a seguir, os gritos das crianças param. Começo a ouvir gritos descontrolados, e só alguns momentos depois me apercebo que sou eu quem assim grita. Passos pesados afastam-se em direção ao jardim. A janela ao fundo do corredor está aberta, e as cortinas esvoaçam ao vento. Um urro de pânico sai-me do peito.
— Nãaaaaaaaaaaaaao!
O meu coração galopa desenfreadamente. Sinto as lágrimas quentes rolarem-me pela cara. Os soluços engasgam-me e uma dor atroz no peito mal me deixa respirar. Parece que nunca mais alcanço o quarto das crianças. Um outro urro sai-me da garganta e eu ouço-o claramente a fazer eco dentro do meu peito.
Olho à minha volta, sem perceber onde estou. São precisos alguns segundos para reconhecer a familiar e tranquila atmosfera do meu quarto. A pouco e pouco acalmo-me. Verifico as horas no telemóvel. Dez e vinte! O Eduardo há muito que se levantara. Que disparate! Porque dormira eu até tão tarde? Acordara por volta das quatro e meia para urinar, estivera bastante tempo acordada, acabara por adormecer e ter aquele pesadelo absurdo! Tenho que telefonar ao Hugo e ao Sebastião. Preciso de me certificar de que estão bem. Claro que nem lhes vou falar naquele pesadelo tonto!
Desço as escadas, tão incomodada como aliviada. Começo a preparar o meu pequeno-almoço. O ruído que me chega do terraço atrai a minha atenção para a janela da cozinha. Vejo um jovem desconhecido, a segurar um volume de telhas preso por um cordel. Só então me lembro de que hoje vinham mudar o telhado. Chove nos quartos dos garotos, e, como não fomos previdentes ao ponto de termos guardado algumas telhas quando construímos a casa, temos que substituir todo o telhado. As fábricas de telhas ganham um dinheirão com pessoas incautas. Devia ser proibido mudarem o encaixe das telhas. Por meia dúzia de telhas, as pessoas são obrigadas a substituírem todo o telhado. Antigamente, um telhado era para uma vida…Agora, tudo é efémero!
Aproximo-me mais da janela. De repente, os meus olhos poisam aterrados, num espetáculo indescritível! O chão do terraço está pejado de destroços de ninhos, e ovos esmagados lambuzam as palhas e as penas dos escombros, que ainda mantêm o seu formato. Uma onda de uma raiva imensa começa a inundar-me. Sinto um calor no rosto, e, por momentos fiquei literalmente cega. Abro a porta da cozinha, corro para fora, a gritar:
 — Assassinos! Que é que fizeram? Assassinos! Assassinos!
O meu marido surge à esquina da casa, fita-me alarmado, com um ar estranho, e agarra-me. Eu debato-me, com os punhos cerrados, e continuo a gritar:
 — Assassinos! Assassinos! Assassinos!
Ao mesmo tempo que Eduardo grita o meu nome, dá-me duas bofetadas. Eu desato a soluçar convulsivamente. Consigo vislumbrar o ar dos trabalhadores que, entretanto, acorreram, paralisados pela surpresa. Eduardo conduz-me para dentro de casa. Deita-me no sofá, enquanto eu descarrego a minha dor. Não tem palavras de conforto para mim. Cobre-me com a manta do sofá, e deixa-me só. Acabo por adormecer de exaustão. Quando acordo, são quatro horas da tarde.
O meu marido está lá fora, sentado no terraço, com uma cerveja na mão. Conheço bem aquela sua pose. As asas do nariz oscilam ritmicamente. Está zangado, muito zangado. No terraço já não há vestígios dos ninhos. Aproximo-me. Calmamente, pergunto:
 — Porque destruíram os ninhos?
Eduardo poisa a garrafa que segurava  na mão. Olha para mim, com um ar acusador:
— Estás ciente do ridículo a que me expuseste?
 — Os ninhos…Porque destruíram os ninhos?
 — Sónia!...O que é que se passou aqui?
— Isso pergunto eu! Destruíram os ninhos, os ovos dos pássaros!...Eles confiaram em nós! Sabiam que podiam vir todas as primaveras, construir aqui os seus ninhos e as suas famílias, que estavam protegidos! E agora…
 — Mas o que é que tu querias? Acorda, mulher! Era preciso mexer nos ninhos, para mudar o telhado! Os ninhos estavam por debaixo das telhas! Não tenho culpa que os trabalhadores destruíssem os ovos! Mas, de qualquer maneira, os pássaros iam enjeitar os ovos, depois de lhes terem tocado! O que me preocupa…
Eduardo respirou fundo, focou qualquer ponto distante à sua frente. E continuou:
— O que me preocupa, é a tua reação inexplicável! Parecias louca, ouviste? Louca! Uma reação completamente desajustada à situação! Tive que mandar os homens embora! Deves-me uma explicação!
Suspirei. Cansada. Triste. Apercebi-me de que ele tinha razão.
 — Desculpa. Mas agora… não posso. Talvez…quando estiveres disposto a ouvir-me sem essa raiva…sem me julgares… Quando estiveres disponível para me ouvires e te libertares dessa impressão de que te coloquei mal perante os outros…neste momento…os outros são quem menos me interessa. Estou muito cansada.
Avancei para o meu quarto. Bebi um copo de água. Deitei-me. Não queria ouvir nada. Não queria pensar em nada. Mas continuava a pensar nos pobres pássaros, que viram a sua família destruída. Haviam de querer voltar para os seus ninhos, chocar os ovos, e não havia ninhos, nem ovos…Esta primavera não haverá pássaros no meu jardim…E não sei se haverá nas primaveras mais  próximas. Como se terão sentido eles, ao assistirem impotentes à destruição dos seus lares, os ninhos, ao massacre dos seus filhos potenciais!
Foi então que me lembrei do sonho! Já o tinha esquecido!
Levantei-me de novo, e desci ao jardim, onde Eduardo continuava sentado no mesmo sítio onde o havia deixado.
— Eduardo, quero contar-te uma coisa. Um sonho. Ou melhor: um pesadelo que tive esta madrugada.
Eduardo ouviu-me, sem uma palavra, sem um comentário. Quando terminei, ele abriu-me os braços, acolhedores. Sentei-me no seu colo. Abraçou-me, longamente. Aninhei-me nos seus braços, e ele beijou-me os cabelos. Ficámos assim, sem falar, durante alguns minutos. Finalmente, ele perguntou:
— Não tens fome?








terça-feira, 26 de março de 2013

A Concertina




Na casa do ti João era uma verdadeira animação. Do nascer ao pôr-do-sol, não havia lugar para tristezas. Não que a ele lhe faltassem motivos para andar mais macambúzio um dia ou outro, com acontecia a qualquer mortal, mas o ti João, quando algo o atormentava, agarrava-se à sua concertina, tocava, tocava, tocava, e até as pedras  despertavam…Era o animador de festas, casamentos  e romarias das redondezas…Festa onde estivesse o João da concertina, era diversão assegurada…
A mulher acompanhava-o a mais das vezes nas suas rondas, cantando e  dançando  as modinhas que o seu João tirava daquele instrumento, encorajando os mais tímidos a participarem no arraial, dando  o seu pezinho de dança….
Não havia na aldeia onde nasceram e viviam casal mais alegre … Criaram os filhos, ao som da concertina, e os males sempre lhes pareciam apoucados, debaixo do ritmo daquelas pitorescas melodias.
Mas, como não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe, a passagem do tempo trouxe com ele a velhice, o desgaste natural…O ti João, já entrado em idade, apercebeu-se que a sua hora de prestar contas a Deus se aproximava… Então teve uma conversa com a mulher:
— Olha, Maria, tu foste sempre uma boa companheira… Mas eu, já cá não vou andar muito tempo…Por isso, quero pedir-te…Sabes como a concertina fez parte da nossa vida…Era o nosso divertimento…Tu não sabes tocar… e eu…talvez ainda dê alguns acordes lá no sítio para onde vou…Tu que dizes?
— Tu queres levar a concertina, não é, homem?                                               
— Pois queria…se te não importas…se não te fizer falta…
— Mais do que a concertina, quem me vai fazer falta és tu, homem de Deus…— disse a ti Maria, com a lágrima a espreitar-lhe no canto do olho…
O ti João não sobreviveu muitos mais dias a esta conversa. E a concertina lá foi ajeitada no caixão, como tinha pedido o moribundo. E, de entre o choro das carpideiras sobressaíam os gritos da Ti Maria, numa dor tão pública, tão genuína, tão desvairada:
— Ai meu rico homem! Homem da minha alma, que levas o nosso divertimento entre as pernas!
Só quem não os conhecesse poderia fazer juízos injustos perante a manifestação de tão sentida separação.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Não me apetece...


 

Hoje não me apetece escrever

Nem sair, nem sonhar, nem ler.

Estou encapotado em mim mesmo

Rosnando na minha lura

Fria, húmida, viscosa, escura.

A crescer dentro de mim o negrume

Imposto por minha imposta clausura.

 

Hoje sinto asco de ser.

De pertencer à mesma miserável

Raça humana que com desumanidade 

Abaixo de animais

Arrosta as mulheres suas iguais

 

Não pode haver humanidade

Em quem isento de bravura

Vestido da mais chã vileza

Mulheres frágeis subjuga

A pretexto de sua ostensiva beleza

 

Cinco  brutas feras…

 

Num execrando ataque bestial

De uma jovem a vida deceparam

A coberto de impunidade usual

Sua frágil intimidade retalharam

 

Que ninguém me diga para esquecer

Que ninguém me diga para perdoar e não ver…

 

Pertencer à raça humana me recuso

A partir de hoje dela não mais farei uso.

Vou partilhar a casota do meu cão

É nele que reconheço meu irmão.

 

domingo, 6 de janeiro de 2013

Prisioneira


Olhava para eles, sentados à volta da mesa. Via-os sorrir, trocarem olhares mais ou menos entendidos, ou até desaprovadores. Media os seus gestos, adivinhava-lhes a direção dos olhares, a impaciência traída na dança inquieta das pernas debaixo das mesas, o nervosismo nascendo no tamborilar dos dedos, ou a confiança latente no recostar lento e largo nas costas das cadeiras…
Prisioneira dentro do muro quase inexpugnável que a vida e a minha própria negligência construiram entre nós, por vezes a minha voz elevava-se exterior a mim própria e à minha vontade, escapava-se por uma qualquer brecha inadvertidamente aberta no muro do silêncio que me envolvia e me protegia. Mas o comentário que então saía, quase como um eco interior, era invariavelmente acolhido ora com intolerante ironia, ora com o condescende comentário de algum dos meus netos:
_ Não sabes de que falas, pois não, avó?
Qualquer palavra estava a mais, falhava o alvo, era desadequada, inoportuna…Deixei de ouvir definitivamente. E de opinar. Encerrei-me cada vez mais na minha surdez protetora, eu, os meus livros, os meus rabiscos e as minhas recordações…Felizmente ainda me resta alguma vista…ainda que tenha que ler com as folhas quase coladas aos olhos. Abençoo os dias de sol, que me permitem errar pelo quintal, com passos lentos e titubeantes, olhando os pássaros, as nuvens no céu, os canteiros adormecidos, as árvores…Mas também os dias de chuva e vento, dormitando à volta da camilha, sonhando com a minha juventude, com os filhos ainda pequenos, quando as minhas palavras ainda se ouviam…
Já só me resta esperar.