"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Canta, mãezinha, canta!

Acordei com uma sensação de conforto, tranquilidade e segurança. Na minha cabeça ecoavam ainda as notas musicais das canções que te ouvi cantar: "A Carmencita", "A Rosinha dos Limões", "O Fado do Hilário," "A Rua do Capelão", "A minha Rua" e tantas, tantas outras que tu ias cantando, enfiadas umas nas outras… Cantavas, cantavas, sempre…qual cigarra incansável para quem o viver é inseparável do cantar… Revivi esses momentos da minha infância e eram tão reais…
As viagens que fazíamos de carro, eram sempre embaladas pela tua voz harmoniosa, e pelas tuas melodias preferidas, que eu aprendi a trautear e a amar, também. Por vezes adivinhava-te os nervos à flor da pele, pela maneira como atacavas as melodias… Nessa alturas, então…não te calavas mesmo…
Desculpavas-te com os enjoos… se cantasses, enjoavas muito menos…Adivinhava a atmosfera pesada pelos silêncios do pai, enquanto tu cantavas, cantavas…Acho que era uma questão de sobrevivência…ou resistência…Mas nunca ele abriu a boca com algum comentário que te murchasse a voz.
É para mim impossível pensar na minha infância, ausente destas melodias... Agora, já adulta, surpreendo-me em flagrante delito de visita aos meus tempos de infância, sendo esta viagem cada vez mais recorrente, um refúgio para onde me recolho…e de lá venho recuperada das desilusões e dores que o viver de um adulto obrigatoriamente comporta…
Visitam-me as lembranças das manhãs de domingo, quando acordava e ouvia a tua voz ainda estremunhada de sono, a telefonia que o pai não dispensava, quer estivéssemos acordados ou a dormir, o ruído dos tachos e panelas que chegava da cozinha…
Se dava conta de todos estes ruídos, significava que estava em casa, e podia ouvi los… A sensação de que nada de mal me podia acontecer, era inconsciente, mas estava lá…
Ainda sem a obrigação de ir à escola, lembro-me de subir para as costas da cadeira em que estavas sentada, e começar a pentear-te os cabelos, fazendo-te os penteados mais esquisitos, e tu pacientemente entregue a este suplício, para que te não perturbasse a leitura, ou te deixasse fazer o teu tricô. Se calhava estares a tricotar, (muitas das vezes camisolas para os meus irmãos ou para mim), ias conversando comigo, ou cantando as tuas canções… Mas, se lias, e eu queria conversar, ias dizendo, entrecortadamente,"Sim…""Hum!" "Está bem!",completamente embrenhada na leitura, sem sequer ouvires o que eu perguntava… e, se bem me lembro, naquele tempo eu era uma grande tagarela, como são as crianças felizes… Depois, mais tarde, quando eu vinha cobrar-te o cumprimento das tuas promessas…
— Mas tu disseste, mãe!
— Eu? Disse lá agora! Não podia ter dito uma coisa dessas!
— Disseste sim, senhora!
Era um grande problema, pois nem sequer fazias ideia do que eu estava a falar…
E eu lá ficava, amuada, remoendo sabe-se lá que terríveis vinganças…
Já mais velha, no liceu, lembro-me de como me sentia calma, relaxada, quando chegava a casa, chamava por ti, e tu me respondias…Até na faculdade, lá estavas, mãezinha querida, e, mesmo que os meus desejos e anseios ficassem abafados dentro de mim, e por vezes invejasse a liberdade das jovens minhas colegas, afastadas dezenas e até centenas de quilómetros dificilmente transponíveis numa época de estradas esburacadas, do controle familiar pela necessidade que o estudo lhes impunha, saber-te ali, à distância de um abraço, dava-me uma sensação de profundo aconchego…e adorava ouvir-te cantar, sentia orgulho por cantares tão bem, e tentava aprender as canções que tu cantavas, e, às, vezes, cantávamo-las as duas…lembras-te?
Por vezes, mãezinha querida, sinto desejos de saltar para o teu colo (dava cabo de ti, eu sei), ou para as costas de uma cadeira, feita outra vez menina, pentear os teus cabelos, deixar-me embalar pelas tuas canções e voltar ao mundo mágico da infância onde tudo ainda é possível…
Oxalá os meus filhos venham algum dia a possuir de mim recordações tão serenas como aquelas que eu guardo de ti, quando um dia lhes der para a nostalgia…se é que algum dia lhes vai dar para isso… quando estou distraída e começo a cantar, pedem-me que me cale, que os perturbo…
As brincadeiras que eu tinha com eles, quando às vezes as recordo, eles não se lembram delas, dos momentos tão maravilhosos que me deram, da felicidade imensa que eu sentia, por serem tão lindos, saudáveis, carinhosos, meigos, educados, por serem parte de mim… Nunca foram miúdos de birras…foram sempre uns queridos…mas em mim permanece a angustiante dúvida:
Será que eles sentiram que nada de mal lhes poderia acontecer quando eram pequeninos? Albergaram nos seus coraçõezinhos os tais estados de alma a que todas as crianças têm direito para poderem crescer harmoniosamente e serem felizes?

terça-feira, 18 de maio de 2010

Chegaram as andorinhas

Meu Deus! Chegaram as andorinhas!
Um gorjeio eufórico e característico obrigou-me a levantar a cabeça do meu trabalho. Vi-as, voando perto de mim. E, num flash, também eu voei até à minha infância, a um momento preciso…
Eu era muito pequena ainda, mas registei fotograficamente esse momento. Vivíamos no segundo andar, na casa da praça, e eu cheguei ao quarto dos meus pais que tinha três janelas altas e rasgadas, com a parte superior ovalada e através das quais eu só conseguia vislumbrar o céu, dado o meu tamanho. Então arrastava uma cadeira e ficava empoleirada a observar, através da janela que dava para a praça, as pessoas que passavam lá em baixo, o pátio que conduzia à entrada da loja onde o meu pai trabalhava, e a vê-lo entrar e sair, ocupado nos seus afazeres. Mas, naquele momento, ainda antes de ter tempo para arrastar a cadeira para perto da janela, fiquei a olhar o céu…
Vi uns pontos negros a fazerem acrobacias no céu, a aproximarem-se e a afastarem-se em círculos ora mais largos ora mais apertados, acompanhados de uns chilreios hilariantes, e a minha alma desatou a cantar de alegria. Identifiquei-os como pássaros. A minha mãe entrou no quarto, pegou em mim ao colo, aproximou-se da janela e disse:
__ São as andorinhas, filha, chegaram as andorinhas.
Fixei o tom alegre e jovial da sua voz.
Chegaram. O mesmo sentimento de ingénua felicidade que experimentei nessa tarde em que as vi cruzar o céu apossou-se de mim. Recebi-as no quintal da minha casa, sentada a uma mesa redonda de ferro enquanto corrijo os trabalhos dos meus alunos, com o mesmo encantamento, passados quase cinquenta anos.
É fantástico o poder dos sons, dos ambientes, que nos transportam àquilo que pensávamos sepultado no fundo das nossas memórias.
Sinto-me feliz!
É já a festa da primavera que me invade os sentidos, os verdes caprichosos das ramagens das árvores orquestradas pela aragem e pelas variadas vozes dos pássaros que respondem uns aos outros, em desafio.
Do meu lado esquerdo, eleva-se, cadenciado, um assobio, num tom monocórdico, que se sobrepõe ao dos outros pássaros. Os sons vêm de todo o lado, parecendo convergir, num coral perfeitamente organizado.
É esse coral que me penetra os sentidos, se mistura com os cheiros da Primavera, e me deixa num êxtase de extrema felicidade.
As árvores que se elevam à volta do meu quintal, parecem entreter-se em amena cavaqueira…A expressão corporal desses seres tranquilos, é verdadeiramente peculiar.
Os ramos das tílias dos quintais vizinhos parecem animados de vontade própria, segredando sei lá que inconfessáveis segredos, ora assentindo, movimentando-se em sentido vertical, para cima e para baixo, ora de um lado para o outro, horizontalmente, como em desacordo com o que se lhe propõe …Agora calaram-se as tílias, e são os ramos das árvores mais pequenas que tomam parte na conversa, e defendem as suas posições, atentamente ouvidas pelas mais velhas.
De entre os vários tons de verde do meu jardim, destacam-se as enormes pinceladas de cor das azáleas brancas, rosa-fúcsia, salmão. A cameleira, que os cuidados do “jardineiro de serviço” mantêm anã, brinda-nos com as suas camélias de um vermelho escuro.
Um grande bando de pardais larga as ramadas onde se encontra, e risca os ares, numa estrepitosa algazarra, afastando-se em grupos para de novo se voltarem a encontrar, num jogo que me faz lembrar a apanhada da minha meninice…
São tão tagarelas os pássaros…Cada um na sua conversa diferenciada, respondendo, quem sabe se altercando. Que pena eu não saber distinguir a voz de cada ave!
Já fui dar uma volta aos ninhos que ficaram do ano passado. Mas ainda estão vazios…Este ano, com a morte da cadela, as andorinhas estarão mais tranquilas, sem precisão de andarem com o coração sobressaltado.

**********

Coisa estranha…Voltei aos ninhos, e este ano não foram ocupados… logo agora, que a ausência da cadela lhes permitiria estarem à vontade…Será em sinal de luto, pelo bicho que os acolhia com latidos de alegria, e, que eu saiba, nunca lhes fez mal?
Uma coisa é certa: o local que ela escolheu para morrer, foi junto dos ninhos vazios…Por vezes eu deparava, cheia de mágoa, com alguns passaritos mortos, ainda sem penas, caídos do ninho…A Daisy sempre “respeitou” os frágeis cadáveres e nunca me apercebi que ela tentasse, sequer, alcançar o ninho que todos os anos aí construía um casal de pardais…E, se os pardais aí continuavam a construir, ano após ano, era porque se sentiam seguros, uma vez que, não sendo o local muito alto, bem podia ser alcançado pelos saltos desta cadela ou pelas suas manhas, que ela tão bem pôs à prova durante os anos em que viveu connosco.

Sorri, menina,sorri...

Que peso transportas
Em ombros tão frágeis
Que duras e vis
São essas imagens?

Menina tão doce,
De sorriso triste,
Que imagens medonhas
São essas que viste?

Que mágoas se escondem
No teu coração?
Quebraram-te o mundo
Da doce ilusão!...

Sorri, menina, sorri,
Que o bicho-papão,
Já não mora aqui!

Ai se eu pudesse
Tuas dores afastar
Contava-te o sonho,
Dava-te o luar!

Dava-te o luar...
Que a inocência perdida,
Não ta posso dar...

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Poema à mãe

Quero partilhar neste espaço o meu poema preferido de Eugénio de Andrde.

Releio-o sempre com emoção.Assim tê-lo-ás à mão,Sophie.


No mais fundo de ti
Eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura,

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha_queres ouvir-me?__
Às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos,

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio de um laranjal…

Mas __tu sabes__a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade

O trevo

Peguei na semente
Que me deste
E ajeitei-a no berço
De carinhos vesti meus dedos
Cobri-a de terra
E afagos em redor.

Reguei-a de esperança
E de cuidados
E aguardei o milagre.

Todas as tardes a terra
Do seu amado
Namorada espreitava
Palpitante o regresso

Reguei-a de esperança
E de cuidados
E aguardei o milagre.

Do segredo da terra
Frágil e verde espreitou
Uma cabecita hesitante.
Fino e tenro fio rosado
Dela fiel amante
Um bailado à vida encetou.

Reguei-a de esperança
E de cuidados
E aguardei o milagre.

Folhinhas abertas
A gritar as quatro
No trevo assumida
A consumação do milagre.

domingo, 16 de maio de 2010

Semente

Se mente alada
Navega sem horizonte
Rompe o infinito sem esteias...

Se mente
Maior é a surpresa
No milagre consumada

Sem ente
Promessa falhada
Negação do ser...

Sente...
a ternura da terra
a frescura da chuva
o cheiro do vento
o apelo do sol

Sete
dias depois...
o descanso merecido

Sémen....
Amor
Flor
Fruto
Ave
Vida...

Semen-te
Amo-te