"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

domingo, 9 de dezembro de 2012

Nunca mais foi Natal

Sempre que mais um Natal me bate à porta, chega com ele a mesma sensação, um misto de engano e desilusão que em pequena me abalou, ao ver, escondida no roupeiro do quarto dos meus pais, uma boneca que, alguns dias passados, viria ocupar o lugar junto do sapato à beira da minha cama de miúda, na manhã daquele dia de Natal. Apesar de ter desaparecido da minha vista há muitos anos, ainda hoje essa boneca vive comigo: toda ela era em plástico: as pálpebras de cílios pintados de castanho-escuro, desciam sobre uns olhos azuis fixos de vidro, os cabelos curtos, de um  castanho dourado pintado sobre o plástico em relevo, simulando os caracóis, e um vestido que era o meu encanto, de chita azul às pintinhas, de linhas direitas, cuja bainha terminava num folho vermelho com pintinhas brancas. Os braços e as pernas eram articulados, e ela podia sentar-se. Os sapatinhos eram brancos, presos por umas correias à volta do tornozelo. A grande novidade, é que os sapatos eram verdadeiros, e não apenas pintados. Dias antes, eu havia descrito com um verdadeiro entusiasmo aquela boneca à minha mãe, que vira na montra do Ti´ Orestes. Esta era à prova de banhos, e eu estava salva de a ver desfazer-se-me nas mãos, como acontecera em tempos à velha boneca de papelão, quando decidira dar-lhe banho, com a conivência do meu irmão. Ai se o Menino Jesus ma trouxesse…
E agora, ali estava ela, no armário. De repente, eu percebera…Mas recusava-me a acreditar no que assim me entrava, sem licença nem prévia preparação, pelos olhos adentro. Ainda guardara a esperança de que tudo não passasse de um engano…de que houvesse alguma explicação que me mantivesse embalada naquela fantasia. Mas quando, naquela manhã fria, saltara da cama, e dera com a boneca junto do meu sapatinho, a imagem do Menino Jesus, em vestido claro, com os pés descalços e frios, varreu-se-me do espírito, e eu só pensava que andara a ser enganada.
A posterior explicação mal-amanhada dos meus pais, tentando remediar aquele impacto negativo que eles imediatamente terão percebido, de que era o Menino Jesus que dava saúde aos pais para ganharem dinheiro para comprarem os presentes aos meninos, e de que eles seriam os intermediários, colou muito mal. E os natais posteriores, foram insípidos, sem aquela magia que me fazia sentir irmanada do Menino Jesus, que se levantaria da sua cama, e viria, também ele cheio de frio, colocar os presentes nos sapatinhos dos meninos. Na minha mente, era esse o meu Menino Jesus, um menino lindo e louro, simplesmente vestido, com a idade próxima da minha, que eu vira numa folha de um calendário religioso, e que adotara. Mas agora, ele desvanecera-se, e em seu lugar ficara um desgostoso vazio. Foram precisos alguns anos para me reconciliar com o Natal. Mas nunca mais foi o mesmo.