"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Estarás grávida...







Quantas vezes me ocorrem episódios que compartilhei contigo, ou outros que, embora os não tenha vivenciado, me foram relatados e por mim guardados com se guardam os objetos que nos transportam a memórias muito queridas…Este meu amor por histórias, a ti o devo…Como ninguém, tu foste uma contadora fabulosa, quer das histórias do “ Bocais”, como tu dizias, quer das histórias tradicionais, quer ainda de pessoas com as quais te cruzaste na vida. Mas, contadas por ti, estas histórias ganhavam uma vida, um fôlego, um cheiro, como em mais nenhuma outra voz…Eras uma humorista de mão cheia, e adoravas uma conversa brejeira…
Adoro lembrar-me das palavras que, no próprio dia em que morreste, proferiste para uma das várias vizinhas com quem durante anos e anos conviveste à soleira da porta, desfrutando das tardes de soalheiro. A mulher, quase tão entrada na idade como tu, ter-se-á queixado de uma indisposição na zona da barriga.
O teu comentário, risonho e insinuante, não se fez esperar:
— Estarás grávida!
A gargalhada foi geral. Elas, as vizinhas, ali estavam, fazendo-te companhia, uma vez que, adoentada, estavas de cama e não podias ir à rua.
A morte estava já à tua espera, no quarto, aguardando a altura propícia para te levar com ela. Depois dos ânimos se terem acalmado, pediste à tua irmã, e minha avó, que te chegasse um beirito de água. A minha avó acercou-se do cântaro, deixou escorrer para a caneca de esmalte um fio fresco daquele líquido de vida. Ajudou-te a soergueres-te da cama. Lambeste os beiços, e, quando a tua cabeça poisou na almofada, já havias partido. Aquele líquido que tu absorveste com tanto prazer, enquanto a vida te era tomada, serviu, certamente, para encetares a viagem, pronta para começares a contar as tuas histórias onde quer que tenhas chegado. Tinha treze anos quando partiste. Soube da tua morte à hora do almoço, depois de chegar do liceu. Primeiro fui assaltada por um sentimento de perda profundo. Quando me contaram a maneira como partiste, sorri. E tenho a certeza que quiseste deixar esta vida, da mesma maneira como a levaste a maior parte dos dias: sorrindo. Sorrindo à morte, tal como soubeste sempre sorrir à vida, apesar das partidas, algumas bem visíveis e dolorosas, que ela te pregou.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Metamorfose


Sentia a cabeça pesada, os membros entorpecidos, uma sonolência maior que o seu próprio tamanho, o qual, diga-se em abono da verdade, havia aumentado só nos últimos tempos, mais, muito mais que o dobro. É certo que o seu apetite era voraz…Agora, só de pensar nisso, sentia-se invadir por um enjoo que se estendia a todo o seu corpo…Fechou os olhos. Estavam tão pesados!…Voltou a abri-los, e a fechá-los, num movimento intermitente e lento. Sentiu saudades das irmãs, quando serpenteavam pelo prado e tudo à sua volta lhe parecia promissor… E, quando ela dizia que o que queria era dançar, voar, riam-se dela… E pensar que chegou a ter inveja delas, quando as viu serem transportadas pelos ares no bico de um pássaro, e uma gritou:
— Estou a voar! Estou a voar!
As irmãs acabaram no estômago de uns pássaros glutões…é claro que isto só o veio a saber muito mais tarde, quando a sua amiga Brisa da Tarde lhe contou como esta breve ilusão se transformara em pesadelo, no momento em que as suas irmãs se viram a ser sugadas para as goelas de passaritos ávidos, todos de bicos bem abertos. E quando ela se mostrou horrorizada com a triste sorte das irmãs, a Brisa da Tarde explicou-lhe que este era o destino de muitas das lagartas da sua condição…Mas ela, a lagarta Tixa, não se conformava…Não queria acabar como elas…A sua amiga também lhe explicou que o seu destino, se ela fosse cuidadosa, podia ser outro…um destino igual ao da sua mãe.
 Conheceste a minha mãe?! — perguntara, entre sobressaltada e curiosa.
— Claro que conheci a tua mãe! Era a mais bela e graciosa dançarina que borboleteava sobre as flores deste jardim!
— Dançarina…a minha mãe…bela…mas eu…eu sou tão feia!…
— Que ideia, menina! Tu tens a beleza própria das lagartas da tua condição!
— Não! Todos me acham feia! E os meninos da casa grande chamaram-me nojenta, repugnante, horrorosa!…sacudiram-me da roupa, e correram a lavar as mãos aos gritos…
— Ora, esses são meninos da cidade! …Têm muito que aprender sobre a natureza, se quiserem instalar-se no campo…
— Por pouco não me pisaram aos pés…
— E o que fizeste?
— Corri a esconder-me debaixo de uma folha de couve…Mas, por favor! Conta-me mais coisas sobre a minha mãe! Como era ela?
E a Brisa da tarde, com um sorriso nostálgico, foi contando.
— Era sonhadora, como tu. E acreditava firmemente que o seu destino se iria cumprir até ao fim…Nunca se deixou vencer pelas contrariedades…
— Não?!
— Não! Era invulgarmente esperta e cuidadosa… Por isso chegou a borboleta.
— Mas, então, se ela era borboleta, e tão bonita, por que razão eu sou uma lagarta tão feia?
A Brisa da tarde sorriu.
— És tão curiosa! Sabes, a maior parte das lagartas nunca chegam a borboletas. Nunca sequer sonham com isso, nem se interrogam acerca do seu futuro. Mas tu és diferente…
— Mas que mistério! Não chegam a borboletas, porquê?
— Pensa no que aconteceu às tuas irmãs! E não são só os pássaros que são perigosos! As abelhas, as moscas, as formigas, as doenças, as chuvas…
— Sim, sim, eu estou sempre alerta! Não quero ser comida, não quero morrer! Eu quero voar, voar, beijar as flores, receber o abraço do sol, correr mundo!...Achas…achas…que  posso?
— Claro que podes!
— Mas como? — perguntei, algo impaciente.
— As borboletas não nasceram borboletas, nem sempre foram tão belas como as vês.
— Não?!
A tua mãe, tal com tu, saiu de um ovo, e começou por ser uma belíssima lagarta.
— Ooooooooh!.......
— É verdade! Usou sempre de todos os cuidados para escapar aos predadores, esses bichinhos que se alimentam de lagartas, e para não adoecer. E conseguiu transformar-se numa linda borboleta, com uma combinação de cores que era um deleite para os olhos! E pensou em ti e nas tuas irmãs com muito carinho, escolhendo, para pôr os ovos, um sítio abrigado, com muita comidinha para vocês comerem logo que nascessem!
— Querida mamã! Mas diz-me, então, como é que eu faço?
— Não sejas impaciente! A vida deixaria de ser aliciante se soubéssemos tudo o que nos vai acontecer! Basta que deixes a Natureza fazer o seu trabalho. E deixa-te levar pelo teu instinto. Mas tem cuidado! Continua a proteger-te dos perigos como até aqui. E alimenta-te muito bem, pois vais precisar de todas essas reservas. Agora tenho que ir. Mas não te preocupes! Estarei vigilante e atenta! Até um dia!
Agora estava sozinha, sem mais ninguém no mundo…Amigos…não eram verdadeiros todos os que a humilhavam, chamando-lhe feia, nojenta…Só a Brisa da Tarde…só ela é que era mesmo sua amiga…mas também a deixara sozinha, com uma conversa de mistério, que só ela é que tinha que descobrir…tretas, certamente, só para ela não ficar triste…Ah! Mas a última conversa encheu-lhe o coração de esperança…O melhor, por agora, era dormir…escolhera um sítio muito escondidinho, e protegera-se bem, dentro de seu casulo...dor…mir…Aaaaaaaaaaaaah!...
No dia em que a Brisa Tarde tivera aquela conversa com Tixa, partira, enternecida com aquela menina tão sonhadora! Então foi passando com o seu manto subtil e transmitiu aos pássaros, às abelhas, às formigas, ao Vento Norte, às nuvens, que a lagarta Tixa que habitava a horta da casa grande era sua protegida. Que se não atrevessem a colocar a sua vida em perigo, pois aquela jovem desejava cumprir o seu destino, e tinha todas as condições para isso. Em breve todos se deleitariam ao vê-la cirandar pelo jardim, transformada numa bela borboleta, tal como o fora a sua mãe, a sua avó, a sua trisavó, até ao perder dos tempos.
Os dias foram passando. E os meses. Protegida pela ramagem de uma laranjeira, Tixa continuava dentro de seu casulo, calma e sossegada.
Um dia sentiu-se despertar, com se uma música interior e desconhecida lhe fizesse vibrar todo o seu corpo. Abriu os olhos. Estava tudo às escuras, tudo muito aconchegado dentro da sua casinha quentinha. Sentia-se muito bem, porém esfomeada e com vontade de enfrentar a luz do sol. Apetecia-lhe espreguiçar-se. Fez um movimento, mas a reação que esperava obter foi deveras estranha. Ela havia-se enovelado sobre si mesma, mas agora sentia o corpo mais comprido, mais leve…mexeu as patas da frente…meu Deus, que patas tão compridas!…sacudiu-se…e sentiu algo exterior a si própria, sobre o seu dorso, a querer levantar-se…Queria mexer-se, esticar-se, mas não conseguia…Em pânico, sem perceber o que lhe está a acontecer, reúne todas as suas energias. Sacode-se. Faz força nas patas, e atira com elas. Espaneja-se com quantas forças tem… Sente algo a quebrar-se, e a casa que ela construíra, a descolar-se do seu corpo. O sol quente envolve-a num abraço…Um último esforço, e ela vê, então, entre atónita e louca de felicidade, umas lindas asas coloridas, a erguerem-se, presas ao seu dorso…Experimenta-lhes a força, planando com elas no ar, batendo-as uma e outra vez. Inicia então uma dança gloriosa sobre o jardim, uma dança de louvor ao sol e à natureza, com as asas levantadas e palpitantes. A Brisa da Tarde chega, suave e leve, e segreda-lhe:
— Seja bem-vinda a este jardim, a borboleta mais bela!