"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sábado, 2 de junho de 2012

Voar mais alto

      Certo camponês encontrou, perdido, o ovo de uma ave, de um tom branco sujo, com umas manchas acastanhadas. Imaginou que poderia tratar-se do ovo de uma águia, devido ao seu aspeto e tamanho. Estava intrigado, pois sabia muito bem que as águias costumam pôr os ovos em penhascos, ou em árvores de grande estatura. A única árvore onde havia um ninho de águia, era ainda bastante distante do lugar onde encontrara o ovo! Dar-se-ia o caso de o ovo ter caído do ninho, e ter vindo a rebolar até ali? Fosse como fosse, iria levá-lo consigo. Pegou no ovo com todo o cuidado, e levou-o para casa, indo colocá-lo junto dos ovos de uma das suas galinhas, na esperança de que viesse a chocar.
      A galinha não estranhou aquele ovo tão diferente dos outros, e aceitou-o como se tivesse saído de dentro de si. Quando o ovo eclodiu, a águia passou a ser alimentada como as outras galinhas, com milho e ração.
Um dia, um biólogo que andava a fazer um levantamento das várias espécies que os camponeses criavam nas suas quintas, veio ter a casa deste camponês. Ao passarem no jardim, a atenção do biólogo foi canalizada para a águia:
— Essa ave não é uma galinha. É uma águia! — observou.
  — Pois é! — concordou o camponês — Mas eu  criei-a como galinha. Ela agora já não é águia, é galinha. Já se esqueceu da sua verdadeira origem. Ela faz como as outras galinhas, apesar das suas enormes asas.
— Não diga isso! Ela é uma águia. Pode ser tratada como galinha, mas tem coração de águia, e genética de águia. Ela não se esqueceu de quem é. Um dia ela voltará a cruzar as alturas.
— Está enganado! Foi tratada como galinha, e como galinha morrerá.
E cada um começou a insistir naquilo em que acreditava. Resolveram, por isso, fazer uma experiência. O biólogo pegou na águia, ergueu-a bem alto, e, desafiando-a, disse-lhe:
— Tu és uma águia, a rainha das aves, e o teu reino é o céu, e não a terra. Cumpre a tua natureza. Voa!
— A ave, em cima do braço do biólogo, olhava para um e outro lado em seu redor. E, vendo as galinhas que debicavam os grãos, voou dos braços do homem para o chão, para junto das suas companheiras.
O camponês mostrou um grande sorriso.
 — Eu não lhe dizia? Ela é uma galinha, ponto final!
— Não! Ela é uma águia, e uma águia será sempre uma águia. Não tenho qualquer dúvida. Ela só precisa de tempo. Se não se importa, amanhã tentaremos de novo.
       No dia seguinte, o biólogo pegou na águia e subiu com ela até ao telhado da casa do camponês. Depois sussurrou-lhe:
— Águia, ouve o apelo da tua natureza. Tu pertences aos céus. Foste destinada a voar. Por isso, voa!
       Mas, mais uma vez, a águia, ao ver as galinhas lá em baixo, a debicarem a terra, voou para junto delas.
     O camponês, mais uma vez, sorriu, e insistiu:
— Está a perder o seu tempo. Ela só conhece esta vida. Nunca será capaz de voar.
— Não vou desistir facilmente. Ela é uma águia. A sua consciência de águia poderá estar adormecida, mas está lá. Ela foi privada da liberdade, mas ela continua a ser quem é. Precisa de despertar os seus instintos de águia. Amanhã tentaremos outra vez.
No dia seguinte, ainda o sol se mostrava tímido, os dois homens levantaram-se e dirigiram-se para a serra, longe das casas e do bulício da aldeia. Caminharam durante algum tempo, até atingirem o cume da montanha. Nesta altura, o sol brilhava esplendorosamente, espalhando laivos doirados nos píncaros da montanha.
         Uma vez aí chegados, o biólogo pegou na águia, ergueu-a bem alto, e bradou-lhe:
— És uma águia. Pertences aos céus, e não à terra. Cheira o apelo da natureza! Abre as tuas asas e voa .Vooooooa!
A águia olhou em redor. Parecia inquieta. Olhava à sua volta, mas mantinha-se parada, alheia ao apelo do biólogo. Mais uma vez, ele agarrou-a firmemente, virando-lhe a cabeça em direção ao sol, para que os seus olhos fitassem bem o astro-rei. O espetáculo do cimo da serra era vertiginoso. O horizonte era amplo e vasto. O biólogo girava em círculo, com ela bem agarrada, dando-lhe um forte impulso, para que ela pudesse sentir o cheiro da montanha e o rumor do vento na sua magnífica plumagem. E gritava:
— Voa! Voa! VOOOOOA!
Nesse momento a águia pareceu acordar. Abriu as suas enormes asas, e, com um movimento forte, mas elegante, entregou-se ao céus, enquanto do seu bico se soltava um grasnado estridente e real. Antes de se perder no azul dos céus, ela experimentou a potência das suas asas, em voos amplos circulares. O camponês e o biólogo observavam, maravilhados, o encontro da ave consigo própria. O biólogo estava emocionado.
Em todos nós vive o espírito de uma águia. Não devemos satisfazer-nos com os grãos miseráveis com que nos querem fazer esquecer a grandeza para que fomos criados. Se Deus nos deu asas, foi para voar.