"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Carta a meu pai



Vale da Ribeira, 2 de Dezembro de 2007

Meu pai:

Nem imagina quantas folhas de papel rasguei, antes de começar esta carta. Virei a minha imaginação do avesso, até, finalmente me decidir por “meu pai”.Embora o senhor tenha tentado apagar da sua vida esse episódio em que participou para me trazer ao mundo, é aquilo que o senhor é, quer queira quer não.
Nem imagina o quanto, em pequena, sonhava com o momento em que o senhor surgiria à minha frente a chamar-me “filha”, e me abraçaria com o amor de pai que eu nunca experimentei, porque o senhor mo negou.
Mais tarde, já rapariga, sonhava ainda que o senhor havia de aparecer, estender-me os braços, e que eu iria a correr aninhar-me neles, como qualquer filho faria...
As raparigas da minha idade sonhavam com um belo rapaz que, tal como num conto de fadas, apareceria do nada, casaria com elas e levá-las-ia para muito longe, onde seriam felizes para sempre. Eu também sonhava...mas o sonho mais importante dos meus dias e noites, era com o senhor.
Um dia havia de aparecer...
E então, eu esperava que, nessa altura, o senhor me resgataria do domínio daquele homem que me humilhava e maltratava, e que a minha mãe arranjou, para que fizesse o papel de pai que competia ao senhor, e que o senhor rejeitou.
Coitada da minha mãe! Como pagou caro o erro de ter confiado nas suas promessas!... Para evitar que eu fosse humilhada na escola quando me perguntassem o nome do meu pai, ou quando tivesse que preencher algum documento e, no lugar do nome do pai fosse obrigada a escrever aquela palavra terrível que me marcaria e inferiorizaria, comprou, para a sua vida e dos filhos, um bêbado do qual era obrigada a fugir pela noite dentro, ao frio, à chuva, arrastando consigo os filhos que ele perseguia munido de uma faca, numa fúria assassina. Aprendi a odiar esse homem, ao assistir às cenas de pancadaria a que ele sujeitava a minha mãe, e aos maus-tratos que nos infligia a todos. Quando descobri que ele não era meu pai, consegui perdoar-me, e prosseguir a minha vida sem o peso terrível que era saber que se odeia o próprio pai. Essa consolação não tiveram os meus irmãos, que, apesar de filhos deste bruto, nem por isso escapavam a esta sanha animalesca.
Mas nessas alturas, em que o álcool e a raiva o viravam contra nós, eu rezava, pedia a Deus que me trouxesse o meu pai, que ele me salvaria das mãos deste louco e lhe pediria contas pela maneira cruel e desumana como me tratava... Se não fora o meu avô a acolher-me em sua casa a partir dos meus catorze anos, não sei o que me poderia ter acontecido...
Mas as vozes do Céu permaneceram mudas...Dizem que vozes de burros não chegam aos céus...Talvez eu fosse burra, mas por acreditar que este milagre pudesse ser possível...Sim, porque de burra para as coisas da escola, segundo diziam os professores, eu não tinha nada...A professora primária bem disse à minha mãe que era uma pena eu não poder continuar a estudar...Mas eu era a mais velha...E o meu padrasto sempre me discriminou relativamente aos meus irmãos...Como pensar em estudar? Era preciso que eu ficasse a cuidar da casa, dos meus irmãos, fizesse a comida, enquanto a minha mãe ia trabalhar para nós e para o bêbado do marido que ficava agarrado à cama semanas inteiras, a curar a bebedeira...
Como teria sido diferente se o senhor tivesse cumprido a lei da ética, já que não pôde fugir à da Natureza, trazendo-me ao mundo...
Imagino o quanto deve ter odiado a minha mãe, por se ter recusado a abortar como o senhor queria!...Sei que a tratou com desprezo, como a um ser inferior, ao arranjar testemunhas que, a troco de uns tostões, empenharam a honra jurando falso, ao inventarem-lhe outros homens com os quais se teria deitado, saindo o senhor livre do compromisso que não teve a dignidade de assumir...
Não lhe bastava tê-la lançado nas bocas do mundo por ser mãe solteira, “crime” do qual o senhor foi cúmplice, tratou ainda de lhe denegrir a reputação, remetendo-a ao mais baixo da escala moral a que uma mulher pode chegar...
Estou a par de tudo...Mas a minha mãe conseguiu superar isso tudo...Se lhe perdoou ou não, não sei. Sei que não esqueceu. Nem eu esqueci, nem esqueço... Aquilo que verdadeiramente me fez falta, como lhe contei, já o senhor me não pode dar.
Por diversas vezes as minhas tias me instigaram a que o procurasse, que havia de se lhe derreter o coração quando eu lhe aparecesse à frente, e o senhor visse na minha cara espelhado o seu rosto...Mas eu nunca quis...Nunca o procurei com receio de que pudesse pensar que estava a exigir aquilo a que tinha direito. A minha mãe diz que eu sou orgulhosa como o senhor.
E não me teria mexido, nem teria sequer falado aos meus filhos no senhor, se o seu irmão, tinha eu quase dezoito anos, me não tivesse procurado, tomado o pulso, perguntando-me se eu precisava de alguma coisa, dizendo que o senhor pensava em mim e queria aproximar-se. Houve quem me alertasse para a possibilidade de os senhores quererem saber se eu estaria na disponibilidade de mover uma acção de investigação de paternidade, a qual só seria possível até aos meus dezoito anos. Não acreditei, e até fiquei zangada. Eu defendi o senhor, veja bem! Que ingenuidade!
E foi nessa altura, quando o seu irmão me procurou, que eu, no fundo de mim lhe perdoei...
Penso que o senhor terá ficado bem tranquilo, ao aperceber-se de que eu, pobre de mim, não seria nenhuma ameaça, nem para a serenidade do seu casamento, nem para o património dos seus filhos, nem para a sua tranquilidade de espírito. Eu sempre disse, muito embora tenha sido chamada de parva por causa disso por muito boa gente, que nunca exigiria nada do senhor. Mas que, se porventura me quisesse presentear, também não recusaria. Houve também quem me viesse dizer que uma determinada terra do seu património, me estaria destinada...Não acreditei...Pelo menos, eu não quis acreditar, com receio de que isso fosse demasiado bom para ser verdade e, ao acreditar, pudesse trazer azar a essa hipótese. Não que me importasse o valor da terra, mas porque esse gesto seria a prova de que o seu coração teria reconhecido a filha que as suas palavras nunca aceitaram. E o meu coração ficou também mais quentinho e aconcheguei num cantinho, o senhor, meu pai…
Mas o tempo foi passando, e o senhor nunca mais fez nenhum gesto para se aproximar, como tinha prometido...E eu respeitei o desejo dessa maneira expresso, de estrangular à nascença esta relação, que nem chegou a nascer. Ficaria sossegada, aqui, no meu cantinho, e não teria a ousadia de sequer pensar em lhe escrever. Mas os filhos fazem-nos repensar as nossas intenções e corrigir atitudes, ou traçar-lhes uma outra trajectória.
O meu filho mais novo, que tem agora onze anos, não me larga, sempre a dizer-me que quer conhecer o avô. A culpa é minha, porque sempre lhes falei no senhor, desde miúdos, com todo o romantismo que a minha alma albergava. O mais velho, nunca manifestou curiosidade em conhecê-lo. Mas este mais novo é tão sensível!...
Os meus filhos são o melhor que eu tenho! Embora com dificuldades financeiras, sempre com os trocos contados, a procurar esticar o dinheiro até ao fim do mês, procuro dar-lhes o que está ao meu alcance, e sempre que posso, fazer-lhes um miminho. Não lhes falta amor, atenção e carinho, e procuro dar-lhes tanto mais, quanto a mim me faltou.
Um dia, depois de muito ter ouvido este meu filho, acabei por ceder à proposta dele e fomos procurá-lo a sua casa, mas o senhor, se estava em casa, refugiou-se bem lá dentro, evitando o confronto.
O meu filho mais novo diz-me muitas vezes que quer ir para a Universidade. Que lhe posso dizer? Cortar-lhe já essa possibilidade? Vou-lhe dizendo que estude, estude muito, porque, se for bom estudante, logo se há-de ver. Claro que gostava que ele fosse doutor, se tivesse cabeça … Mas sei que não temos possibilidades económicas para isso. Mas, se ele o merecer, e continuar com essa ideia enraizada, eu tudo farei para o conseguir. Continuo a ser orgulhosa, mas agora sou mãe. Há outros sentimentos que se sobrepõem ao orgulho.
Entretanto, o meu filho continua a insistir em querer conhecer o avô.
Não sei como o serenar. Que lhe hei-de dizer? Que o avô não quer saber da sua existência?


Cumprimenta-o a sua filha,
Leonor


P:S: Pedi à minha patroa que me corrigisse o português desta carta. Ela é minha amiga, desde os meus dezasseis anos, e eu confio nela. Ajudou-me a encontrar as palavras para dizer aquilo que eu queria dizer, mas não sabia como. Mas as ideias, são minhas, e só minhas.

2 comentários:

  1. Estou de lágrimas nos olhos....
    Sermos mãe muda-nos tanto....
    Espero que consiga a resposta à sua ultima pergunta.

    SC

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  2. Felizmente que esta situação é ficcionada, embora me tenha deixado tocar por algumas situações reais vivenciadas por gente anónima e heróica.
    É certo que a bênção de sermos mães nos muda a perspectiva como enfrentamos quase tudo.

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