"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Salvar-me...


Hoje acordei com um grito a crescer-me na alma, a alastrar em cada segundo pelo édredon, pela cómoda, pelas paredes do quarto, pelos vidros da janela…abri os olhos e as paredes lentamente e debruçarem-se sobre mim, a encerrarem-me dentro, a quererem sepultar-me viva dentro delas sem retorno. O grito da alma subiu-me aos lábios e emudeceu de som, a gritar só para dentro, mais e mais, e, mesmo depois de enrouquecer, continuou a gritar. Levantei-me e o grito sempre dentro de mim, exigente e ciumento de qualquer atenção que se lhe não dirigisse.

Está na hora, é agora ou nunca, vou estrangular-te, grito danado, roubar-te o último alento. Vou buscar os lençóis e tapar todos os espelhos, não posso olhar para eles para não perder a coragem, e vou partir, fugir deste cerco que me transforma em grito, toda eu sou grito, os olhos, a pele, os cabelos, as unhas, a língua, os passos que começo a dar pela casa…Vou pegar as chaves do carro, não vou tomar banho, é preciso partir sem demora antes que chegues, só a roupa do corpo me basta, agarro no carro e vou carregar no acelerador e voar com destino a parte nenhuma, colocar uma distância cada vez maior entre estas paredes e o mundo sem medida que me chama, de onde essa voz não sei, sabê-lo-ei quando chegar, reconhecerei o meu poiso, meu abrigo, e voltarei a viver. Vou ao banco levantar o dinheiro, o que ganhei e o que me deixaram os meus pais, e metê-lo todo no saco de viagem que me ofereceste no Natal. A tua metade lá ficará na nossa conta que vai passar a ser só tua, e tudo vai passar a ser só teu, só eu vou passar a ser só minha. E depois deito ao rio os cartões, todos os cartões, não preciso deles para nada, sem identidade nem eu saberei quem sou, serei eu quando chegar. E não vais acreditar que eu tenha partido, no roupeiro as minhas roupas a murcharem sem o meu corpo, a mesa posta, o almoço dentro do microondas, ela vem já não tarda nada, e quando for muito alongado o meu tardar e as sombras da noite te trouxerem a inquietação, estarei longe, sem rosto nem rasto, desculpa, meu amor, deixo-te as gatas e as orquídeas para não morreres nem tu nem elas de solidão. Eu há muito estou morta, morri quando me matou os sonhos que me desabrochavam no caule esta atmosfera nociva, por isso tenho a respiração suspensa dentro de mim, e os sonhos mortos à espera de serem ressuscitados, e há-de ser um sopro puro e limpo de passado que os há-de trazer de novo à vida, e esvaziarei então os pulmões há tanto tempo de respiração suspensos agora libertos de todas as dúvidas e receios e beberei sôfrega das fontes que jorrarem à minha passagem. É longo o caminho e não sei por onde caminhar, nem que caminho tomar, mas os meus passos me conduzirão onde devo chegar, e eles reconhecerão o caminho e a meta de chegada e então ocuparei o espaço que me pertence, e que me estava reservado desde que os meus olhos se abriram para a luz.
O carro, deixá-lo-ei por aí, abandonado onde possas recuperá-lo, quando estiver salva… quem me há-de salvar de mim…Tu nunca entendeste, e eu desisti de plantar o entendimento dentro de ti, quando se apartavam de sentido as palavras que usava para teu esclarecimento.
A chave a rodar na porta e eu sem o almoço feito. Nem sequer as compras do super-mercado!
Abro o chuveiro e afogo os gritos na canção que começa a encher os muros da casa de banho.