"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Um lobo desastrado

À beira da floresta, não muito longe do povoado, vivia na sua toca o Lobo Mau com a Dª Loba e os seus filhotes. Sim, sim, esse mesmo…O tal que não consegue tirar da cabeça os três porquinhos… Pois o que acontece é que o Lobo é agora pai de família, cheio de responsabilidades, e todos os dias tem que sair para procurar alimento para a mulher e os lobinhos. Mas a crise também chegou à floresta. A vida não está nada fácil, nada fácil, e agora que a neve cobriu os campos, a caça não aparece assim à mão de semear…Ainda por cima, o Lobo Mau está cada vez mais desastrado, e não consegue levar para casa nada de jeito…Uma vez, ainda não há muito tempo, até ficou preso numa armadilha…Se não fosse a Dora, a mãe dos três porquinhos, a estas horas já ele estaria transformado em picado, a Dª Loba viúva, e os seus filhotes órfãos.…Humilhara-se até mais não, para convencer a Dora a ajudá-lo a libertar-se… Fez um grande choradinho, prometeu que nunca mais iria perseguir os três porquinhos, que ele trazia debaixo de olho há tanto tempo, e que até os iria proteger do ataque dos outros lobos, a ela e aos filhos…O que um pobre lobo tem que fazer para defender a pele…
Os filhos da Dora eram agora uns porquinhos crescidos, rosadinhos, mas muito preguiçosos. Nunca mais se resolviam a ir tratar da vida…
Os seus filhos, os lobinhos, eram ainda muito pequeninos e precisavam de muitos cuidados….Lembrava-se muito bem das palavras da Dona Loba:
__Vê lá se, desta vez, trazes alguma coisa de jeito para comermos! Os pequenos estão esfomeados.
__ Está bem. Está bem!
Não podia falhar. Aproximou-se pé ante pé do galinheiro da quinta do sr. Leonardo. Mas o lavrador estava à sua espera e mandou-lhe uma chumbada. Pelos vistos, estava-se nas tintas para a lei protetora dos animais... O Lobo correu, correu, correu, e só parou lá longe, já fora do alcance da arma do homem. Apalpou-se, a certificar-se de que não lhe faltava nenhum bocado, e lá se acalmou.
Que iria fazer à sua vida? Ele bem via o Lobo Cinzento a rondar a Dona Loba, os olhares cobiçosos que lhe lançava. A tola não percebia que o Lobo Cinzento só sabia afiar as garras, que não lhe serviam para nada, e dizer umas larachas bonitas… Caçar não era com ele… Mas as mulheres, quando lhes dizem palavrinhas doces ao ouvido, perdem a cabeça…
Sentou-se a descansar da correria, quando ouviu:
__Quem tem medo do lobo mau, lobo mau, lobo mau…
Olá!...Escondeu-se atrás de uma moita. E viu passar, em fila indiana, a saltitarem despreocupadamente, três porquinhos. Bem, de porquinhos não tinham nada! Eram uns porcos bem matulões, crescidos, rosadinhos, apetitosos! Afinal a sorte estava do seu lado. Oh não! Oh não! Não! Não! Nãaaaaaaaaao! Eram os filhos da Dora! Não podia comê-los! Tinha prometido! Mas as palavras da dª Loba ecoavam-lhe aos ouvidos:
__Vê lá se, desta vez, trazes comida para casa!
E os lobinhos a gemer de fome, magrinhos, magrinhos…
E o Lobo Cinzento a afiar as unhas, e a cantar loas à Dona Loba…
No final de contas, ele podia sempre desculpar-se e dizer que não sabia que eram os filhos da Dora…estavam tão grandes, desde a última vez que os tinha visto…eles não traziam o bilhete de identidade estampado na testa, pois não?…E quem lhe mandara a ela, acreditar em palavra de lobo? Na cadeia alimentar, os lobos comem os porquinhos… Não se pode fugir à natureza.
Decidiu-se e avançou para eles, cautelosamente. Mas, no momento em que ia deitar as unhas a um deles, tropeçou e…CATRAPUM! aterrou no chão, o focinho enfiado na neve. Os três irmãos desataram a fugir, cada um para o seu canto, numa grande guincharia… O lobo levantou-se, sacudiu o pelo, olhou em volta, não fosse alguém ver a triste figura que acabara de fazer, e disse:
__ Não hão de perder pela demora…Amanhã não me escapam.
Foi então que percebeu onde tinha tropeçado: num caixote de couves que tinha caído da carroça dos produtos que o sr. Leonardo ia todos os dias vender ao mercado. Juntou as couves que estavam espalhadas para dentro do caixote, e disse:
__ Por hoje tenho que convencer a Dª Loba que a comida vegetariana é muito mais saudável!

E voltou para o covil, arrastando penosamente as couves que iriam ser a única coisa que os cinco iriam trincar.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

É hoje...

Vou fazer-lhe o bolinho de que ele gosta...é tão guloso…vai adorar a surpresa, ai vai, vai! Hum! Tenho que bater mais um bocadinho, para ficar bem fofinho… ele adora bolinho de laranja…com bastante raspa…assim, e assim…está quase no ponto…Ai!.. Há tantos anos que aquele homem anda perdido! Foi comprar as velas para o meu bolo de aniversário, e…nunca mais voltou! Ah! Faz hoje… 20 anos! Ai, já são horas, deve estar a chegar…He! He!He! He! Hoje disse o responso direitinho, sem me enganar! Tenho muita fé no meu Santo Antoninho! É hoje, que ele vai voltar!...É hoje!
A Marlene cabeleireira deu-me uns conselhos…Ai! Que vergonha! Mas ela lá sabe! De homens percebe ela! Percebe quase tanto de homens como de cabelos…ou mais ainda…eu até acho que ainda percebe mais de homens do que de cabelos…ela lá os traz atrás, mansos como cordeirinhos…pois ele hoje não me vai escapar…Com as lições da Marlene…Ai não vai, não! Já tenho tudo pronto…Eh! Eh! Eh! Camisinha de noite, um perfume, e mais umas surpresas…Eh! Eh! Eh! Eh! Eu não estava habituada a estas coisas, mas a Marlene é que sabe…ela garantiu-me que ele não vai resistir…nem sei se ainda sei como se faz...Vinte anos, é muito ano…Nunca mais nenhum me tocou…hoje vou tirar a barriguinha de misérias…Eh! Eh! Eh! Eh!
E depois de estar consolada… ZÁS! Nunca mais há de ter vontade de ir às gatas…

Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!  

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Terrine de lapin

   Já não a podia ouvir…” Tenho tanta pena de partir e deixar cá os grandes companheiros da minha vida!”…
Ingratidão, é o que é…Eu já lá trabalho há mais de quarenta anos…ainda não tinha feito os dezasseis…E o que eu lhe tenho aturado! Mas os grandes companheiros da vida dela eram os gatos…os gatos é que ela tinha pena de cá deixar, quando fosse prestar contas a Deus…e que grandes contas é que ela tem que prestar, ai tem, tem, tantas crianças com fome por esse mundo fora, e ela :“ os meus amores, os meus filhinhos” para os gatos, claro…Credo, isso até é pecado!...
Bem, verdade seja dita, que eu pensava muitas vezes : “ a minha senhora tem razão! Se ela morre primeiro que os gatos…habituados a tudo do bom e do melhor…” Eu gatos, puffff! Ainda se fosse um canarinho…
Pois nem de propósito…andava eu fartinha de a ouvir, e a morder a língua, para não lhe dar uma daquelas respostas, quando…pumba! Li numa revista que trouxe a sobrinha da minha senhora…lá em África…ou seria na Ásia? Já nem sei…pois, eu li, que lá nesses lugares, quando os mortos morrem, não, quero dizer, quando os vivos morrem, eles…credo! Que selvagens!...comem-nos! Eles pensam que, assim, ficam com a mesma sabedoria, força e inteligência desses que comem…
Pois a minha senhora comeu uma terrina de lapã…não, não é assim, é terrine, diz a minha senhora, é um nome estrangeiro, que eu dessas coisas não sei, só fiz a 4ª classe…antiga, que vale mais do que agora essas universidades onde não aprendem nada…
Então fiz a terrine de lapã sem lapã, está bem de ver…tinha que ser qualquer coisa picada, que a carne era muito dura…
Coitadinha da minha senhora!...Já anda mais animadita… Os gatinhos sempre morreram antes dela, como ela queria…Claro, tive que lhe dizer que os encontrei mortos no quintal, e que os da Câmara os vieram buscar para os enterrar…ainda se aborreceu comigo, queria-os enterrados no jazigo da família…felizmente que a sobrinha lá lhe fez ver que aquilo era um disparate…
Ai o que ela chorou, Santa mãe do Céu! Ainda chora, de vez em quando, a olhar para as fotografias dos gatinhos…Mas o tempo tudo cura, não é verdade?

Bem… Deixa-me cá ir fazer o almocinho da minha senhora…Hoje vai ser bifinhos com cogumelos…O que ela gosta de carne…Ai, eu não! Enjoei, não sei porquê…carne, é coisa que me não atravessa os gorgomilos…

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Equívocos

 Ajeitou o colar em frente ao espelho. Acomodou o cabelo com a mão direita, beliscou as faces, mordeu os lábios. Lembrou-se de um bâton que havia comprado ainda a mãezinha era viva. Não se atrevera a usá-lo à frente dela, que criticava aquelas garridices, mas às vezes, no seu quarto, experimentava-o, e imaginava-se a sair com os lábios rosados, e os olhares que atrairia. Foi procurá-lo numa caixa que estava dentro de uma gaveta da cómoda, passou-o pelos lábios, e sorriu para o espelho. Num impulso, abriu ligeiramente a boca, e colou-a ao espelho. Afastou-se um pouco, e contemplou o contorno dos seus lábios. De repente, pegou num bocado de papel higiénico e começou a esfregar a mancha no espelho, com gestos que denunciavam irritação.
Pegou nos óculos e, no momento em que os ia colocar, hesitou. Abriu a caixinha que estava em cima do armário da casa de banho, e guardou-os cuidadosamente. Não ia precisar dos óculos para ir ao café. Era míope, mas conseguia ver muito bem ao perto. Os óculos deformavam-lhe os olhos, que até eram bonitos. Ficava com um olho muito maior do que o outro, com um ar completamente patético. Ia tomar um cafezinho, talvez no café do rés-do-chão do prédio. Ou talvez se aventurasse até mais longe. Logo se veria. Desde que a mãezinha morrera, há três meses, que só saía ao domingo para ir à missa. O Sr. Leonel da frutaria trazia-lhe a casa o que ela encomendava pelo telefone. De resto, fora gastando o que havia na arca e na despensa. Mas agora, outro galo lhe cantaria. Era tempo de começar a viver a sua vida. “ Hoje era o primeiro dia do resto da sua vida”, como dizia a canção. Quem sabe, se ainda estaria em tempo de…não era de se deitar fora...Nunca lhe faltaram pretendentes, isso não…Mas a mãezinha…nenhum era suficientemente bom…e ela fora murchando…Ai o António carteiro!…tão bonito, tão bom rapaz, a bichanar-lhe palavrinhas aos ouvidos quando vinha entregar a renda do quintalito que a mãezinha lhe entregara para cuidar. Uma vez apanhou-os, ele encostadinho ao seu ouvido a murmurar-lhe doçuras, ela derretida de gozo, foi um caso dos trabalhos…Nunca mais o António carteiro foi entregar as rendas…Passou a depositá-las no banco. Nessa altura ainda a mãezinha vendia saúde…
Em vez de tomar o elevador, desceu as escadas a pé. Desde que ficaram encurraladas no elevador, devido à falta de eletricidade, ela e a mãezinha, nunca mais desceu de elevador. Chegou ao fundo das escadas com o coração a palpitar, não sabe se do cansaço, se da ansiedade…
Aproveitou para ver o correio. Como quase sempre, só publicidade. Não! Havia um envelope! Azul claro, mais pequeno que os envelopes convencionais. Ercília virou-o de um e outro lado. Estranho! Não estava endereçado, nem tinha remetente. Abriu-o. Dentro, estava um bilhetinho, da mesma cor do envelope. Estava escrito ao computador, em letra que imitava a manual.
Minha querida:
Tenho esperado por si toda a minha vida! Continuo aguardando um sinal seu para me aproximar.  
Não seja má! Não me despreze! Ainda podemos ser muito felizes! Espero-a na pastelaria “Bom Sucesso”.
Sempre seu,
A assinatura era um rabisco ilegível.
Ercília sentiu um calor atingir-lhe as faces e o corpo todo. Olhou em volta, mas não havia ninguém. Antes assim. Então ela era a querida de alguém sem saber? Alguém esperara por ela toda a vida… “ Ainda podemos ser felizes”
A pastelaria “ Bom sucesso” ficava a dois quarteirões…Pois bem: não era tarde nem era cedo. Resolutamente meteu pés ao caminho.
Porém, sentia-se estranha. Nem sabia caminhar direito na rua, sem o apoio da mãezinha, o seu braço enfiado no dela…
Uma lagrimazinha apareceu-lhe no canto do olho…Não era altura para dramatismos. Já chorara tudo o que havia para chorar. Agora era preciso voltar à vida. À sua vida. Até ali vivera a vida que a mãezinha lhe impusera.
Ergueu a cabeça, endireitou o corpo, e avançou, decidida. Pouco depois estava em frente da pastelaria “ Bom sucesso”. Entrou, sentou-se numa mesa perto da entrada, respirou fundo, e só depois o seu olhar varreu os clientes. A maioria pessoas de meia-idade, como ela, e um grupo de quatro raparigas numa mesa.
Havia dois homens sozinhos. Um já bastante velho, que não tirava os olhos do jornal. O outro, olhava para a porta, disfarçadamente. Era certamente o homem do bilhetinho. O tal que esperara por ela toda a vida. 
O coração de Ercília bateu descontroladamente. Era elegante, e parecia educado. Usava um blazer de bombazina castanho, e umas calças claras de sarja. Ercília desviou o olhar. O empregado aproximou-se e ela pediu um café. Atreveu-se a levantar os olhos, e continuou a sua observação, tentando ser discreta. O homem tinha um bigodinho grisalho com umas pontas bem aparadas. Quase completamente calvo, mas uma calvície que lhe assentava bem. Agradava-lhe o que via. Percebia-se bem que estava nervoso, como ela. Faria de contas que não tinha lido o bilhetinho. Ele que viesse falar com ela. Bebeu o seu café, aparentando uma calma que estava muito longe de sentir. Em seguida, pediu um copo de água, e foi bebendo calmamente. Mas ele, nada. Era tímido, certamente, ou gostaria de fazer as coisas à antiga. Ai, como a mãezinha o teria apreciado! Ele deitava os olhos na sua direção. Parecia-lhe que sorria. Sorriu-lhe, também. E baixou os olhos. Quando os levantou, ele dirigia-se para a sua mesa. Ercília sentiu-se desfalecer. Quando estava perto dela, soltou um profundo suspiro, mas não parou. Saiu.
Ercília ali ficou, a respiração ofegante, como alguém que acabasse de fazer uma longa corrida. Esperou, acalmou-se, pagou, e saiu. Nessa noite, não dormiu. Pela cabeça passaram-lhe as imagens de tudo o que se passara. Certamente que ele não tivera coragem de a abordar. Mas ela não tinha pressa. Ele prometia-lhe a felicidade. Quem já tanto esperara, não se importava de esperar um pouco mais para ser feliz. “ Saber esperar é uma virtude”, era um dos lemas da mãezinha. Levantou-se muito cedo, e começou a tirar medidas às janelas. Iria colocar cortinados novos na sala e no quarto. Era muito importante renovar o quarto, comprar móveis novos, sim, sobretudo uma cómoda nova, para as roupas dele, e…claro, uma cama de casal. Estava fora de questão utilizarem a cama que pertencera aos paizinhos.
A manhã passou-a a fazer limpezas profundas, a colocar no lixo trastes de que nunca tivera a coragem de se desfazer.
Almoçou num alvoroço, mal conseguindo esperar pela hora do café na Pastelaria " Bom Sucesso”. Quando entrou, já ele estava lá ao fundo, na mesma mesa onde se sentara no dia anterior. Ercília sentou-se à entrada, mesmo virada para ele. Desta vez, sentiu-se mais arrojada, foi olhando para ele sem desviar o olhar. Como no dia anterior, ele sorriu-lhe discretamente. Ela sorriu-lhe abertamente. Questionava-se se seria desta vez que ele teria coragem para lhe falar. Mas agradava-lhe este namoro discreto, esta troca de olhares, como uma preparação para cavalgadas mais arriscadas. De repente ele levanta-se, e ela pensa: é agora.
Mas não. Partiu, deixando-a como a uma criança a quem tiraram um brinquedo. Estaria a pô-la à prova?
Nessa noite, Ercília sonhou, sonhou e sonhou. Sonhou com o seu amor, com uma vida venturosa de profundos arrebatamentos amorosos, e acordou feliz, alagada em suor. E tomou uma decisão: se ele não viesse falar com ela, tomaria a iniciativa.
Entrou na pastelaria, olhou em volta, e viu-o sentado ao fundo da sala, numa mesa protegida pela penumbra. Ercília não queria acreditar nos seus olhos: na mesa do seu noivo, a sua vizinha do 2º andar, uma lambisgoia divorciada, de costumes duvidosos, olhava-o como se o quisesse engolir. E ele, com um ar perfeitamente idiota, não tirava os olhos dela, as mãos dele sobre a mesa, encaixadas nas dela.
Sem se poder conter, Ercília avançou para eles, levantou a carteira, e malhou, malhou, malhou em cima dele.
Felizmente para Ercília, o caso resolveu-se sem recurso aos tribunais. Teve que apresentar um pedido público de desculpas, escudando-se no estado de choque pela morte recente da mãe, e pagar uma indemnização ao queixoso.
Nunca mais saiu de casa. E quem olha para aquele terceiro andar, pode ver, pendurados nas janelas,  uns farrapos velhos comidos pelo sol, que outrora já foram cortinas.

sábado, 19 de abril de 2014

Um engano qualquer pessoa tem

S
 ou uma mulher de hábitos. He! He! He! He! Tenho um frasquito de vidro, onde vou metendo as moeditas pretas. Para as minhas gulodices, sabem! Todos os dias eu vou lá, e tiro as moeditas necessárias para o meu donutezito, aqui na pastelaria ao lado. Faço questão de pagar com as moeditas que vou juntando no frasquito.
Mas…sabem, contar as moedas, não é fácil…também a vista já não é o que era…às vezes, engano-me, e chego à pastelaria, e lá falta um centimozito. Ah! Mas a rapariga, dá-me sempre o meu donut. Sempre! Quer dizer: dava! Não é que hoje, me disse descaradamente, que não mo podia dar, que faltava um cêntimo? Eu disse-lhe: “ Mas, ó Lurdinhas, se me dás sempre o donut, porque é que hoje não mo hás-de dar? E ela disse-me, assim a frio, que eu já lhe devia um euro! Que tivesse paciência!
— Ó Lurdinhas, eu paciência, tenho, filha, mas dá-me lá o donut!”, insisti  eu.
“Que não, e que não e que não!” Isto compreende-se? De um dia para o outro, pronto! Já não há donut para mim! Eu sou uma pessoa de hábitos! Já tenho uma certa idade! Exijo respeitinho!
Bem, voltei-me, e fui à mesa, pedir à minha amiga um euro para a rapariga. E disse-lhe:
— Toma lá o euro, mulher!
E enfiei-lho pela goela abaixo. Ih! Que pandemónio! Até tiveram que chamar a ambulância. Parece que a rapariga tem digestões difíceis. Aqui para nós que ninguém nos ouve, deve ter pensado que a moeda era para comer! Bem! Um engano qualquer pessoa tem!
O que mais me preocupa é que, certamente, não vou conseguir recuperar a moeda, para a restituir à minha amiga.   


domingo, 13 de abril de 2014

Mais leve

Já só me faltava receber a encarregada de educação da Raquel, uma adolescente problemática, amiga de chamar a atenção, quezilenta e arrogante. Desaproveitava as grandes capacidades que possuía, para ser a líder dos alunos malcomportados. Inteligentíssima, era perita na arte da argumentação, entrando em duelos verbais com os professores dos quais frequentemente saía vencedora, o que reforçava a sua posição entre os seus colegas. Apesar disso, o seu aproveitamento escolar nunca estivera em risco.
Quando levantei o olhar da papelada, não vi a mãe da Raquel, mas um homem.
Apressou-se a estender-me a mão, apresentou-se como sendo o pai da Raquel, explicando que a mãe, a encarregada de educação, tinha ido de visita aos pais nos Açores, levando consigo a filha mais nova, enquanto ele ficara com a mais velha.
Arrepiei-me quando o vi. Se ainda tivesse dúvidas, elas desapareceram à medida que ele ia falando. Todavia, não detetei qualquer indício de me ter reconhecido. Falava do assunto da Raquel com a preocupação natural de quem tem uma filha adolescente problemática a tentar concentrar sobre si todas as atenções. Ouvira a leitura das participações dos professores, que eu lhe lera com voz trémula, e prometeu que iria conversar com ela. Recebeu fleumaticamente, pareceu-me, as notas da filha, assinou todas as fichas e demais papelada que eu lhe apresentei, dobrou ao meio a folha da avaliação com um vinco, e guardou-a no bolso interior do casaco. Era mais velho do que eu oito anos. Porém, estava bastante envelhecido, e a diferença de idades parecia muito maior. Continuava magro, com sempre fora, mas parecia arrastar consigo todo o peso do mundo. A mesma voz rouca e sensual que tanto me perturbara, deixava-me agora indiferente.
Em tempos as nossas vidas tocaram-se profundamente, numa roda de violência, paixão, perdão, gritos, choros, equimoses no corpo e na alma.
Eu fora obrigada a fugir, deixando para trás o meu emprego, e acabara por aceitar um lugar de professora no Algarve. Soube que me procurara junto dos meus pais, que o avisaram que me deixasse em paz se não queria estragar a vida dele e a deles.
A última vez que me chegaram notícias, através da amiga comum que nos apresentara, já eu estava casada com um amigo de infância, os meus três filhos já tinham nascido e eu tinha regressado ao Norte. E era feliz.
Ele preparava-se para casar com a mãe das duas filhas, numa altura em que a maior parte dos amigos da sua geração estavam a começar a ser avós. Dissera à nossa amiga “ que já era tempo de assentar.” Só depois do nascimento da filha mais nova lhe parecera oportuno assentar. Recordo o sentimento de piedade que então me invadiu quando soube daquela notícia. Piedade pela mulher, pois segundo vários tratados que então lera sobre violência doméstica no lar e no namoro, um agressor dificilmente deixará de o ser, pois qualquer situação que desequilibre o seu quotidiano, poderá despertar a fera adormecida.
E agora ela ali estava, na minha frente, ainda com o poder de me deixar nervosa e receosa. Ganhei alento, afirmando para mim própria, com a convicção possível, que aquele farrapo não poderia voltar a fazer-me mal. Tinha chegado o momento de resolver aquele assunto pendente na minha vida, para que os pesadelos deixassem, de uma vez por todas, de me atormentar. Necessitava de largar aquele fardo para prosseguir a minha caminhada com mais leveza.
— E por agora é tudo! — concluí, estendendo-lhe a mão.
Nesse momento olhei-o bem de frente, e arrisquei, tentando demonstrar uma segurança que estava muito longe de sentir.
 — Já esqueci tudo e já perdoei. Siga a sua vida em paz.
Ele correspondeu ao aperto de mão, suportando o meu olhar sem pestanejar. Nada disse. Acompanhei-o à porta da sala. Fiquei a vê-lo afastar-se, as costas curvadas, um ligeiro arrastar da perna direita.
Quando chegou ao cimo das escadas que o conduziriam ao piso inferior, voltou-se. Nos seus olhos pareceu-me ver a humidade brilhante deixada pelo assalto de alguma lágrima. A sua boca mexeu-se, sem que qualquer som dela saísse. Mas eu pude ler o que ela dizia:
 — Obrigado!
Voltou-se e lentamente foi-se apagando do meu campo de visão, à medida que ia sendo engolido pelas escadas.
A Raquel já não acabou o terceiro período na escola. Foi transferida para os Açores.   

terça-feira, 11 de março de 2014

Persiana assassina

J
á lhe tinha dito várias vezes que me não acordasse de manhã, que eu precisava de dormir. “ Porque não dormes de noite, como toda a gente?” Sabem como é, partilhar o quarto com uma miúda muito mais nova do que nós? Apesar de estar a passar férias na casa dela, dormir no quarto dela, respeitinho! Eu adorava aquela prima, a sério! Mas a adoração tem limites. E ela, às vezes, era chata, era mesmo muito chata. Agradavam-me as noitadas, discotecas até quase de manhã. Estava no meu tempo. Era jovem, precisava de me divertir. Mas ela dava-me cabo do juízo. Já não bastavam os meus velhos…
De manhã, quando eu ainda estava no primeiro sono, ouvia a persiana a subir, a subir…Ainda por cima, aquela persiana fazia um estrondo danado…Depois, a claridade irrompia a jorros pelo quarto adentro. Eu ficava irritadíssima, e, com gestos bruscos, para que ela percebesse, tapava a cara com os cobertores, e virava-me para o outro lado, sempre a resmungar. Pois sim! Nada a detinha! Enfiava o gasganete pela janela, e gritava, com a sua voz estrídula, a chamar os gatitos vadios que ela acolhera, e dormiam agora num caixote por cima da garagem:
__Bichinhos, bichinhos, bichinhos! Bichinhos, bichinhos, bichinhos!
E nunca mais se calava. Mas um dia, calou-se de vez. A persiana caiu-lhe de chofre em cima do pescoço, como uma guilhotina! Gostava tanto daquela prima!

Ainda hoje não consigo perceber como é que as fitas das persianas rebentam logo com um puxãozito.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Reinventemos as palavras, meu amor...

Reinventemos as palavras, meu amor!

Que dos nossos lábios
Emerjam,
Despidas de gelo,
Quentes e confortantes
Que ateiem a chama
Tantas vezes pálida
Do nosso viver.

Reinventemos as palavras, meu amor!...

Que dos nossos gestos
Brote a ternura
Perdida algures
No mais fundo de nós...

Reinventemos as palavras, meu amor!...

Que dos nossos olhos
Chispe um fogo
Que nos envolva
E nos devolva
O calor da paixão!

Reinventemos as palavras, meu amor!...

Que as palavras que troquemos,
Sejam as palavras desejadas
As palavras adivinhadas
Por nossas almas alvoroçadas.

Restauremos, enfim,
O nosso amar...
Que reines eternamente
No meu coração.
E no teu, possa eu
Também reinar!


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Paranoia

Aquela história que uma vez me impingiste, de quereres fugir comigo, nunca me convenceu…Mas agora…ser tua… Nunca quis outra coisa… Vem-me buscar! Aqui não é o meu lugar!...É tudo doido…Casaremos!...Quem sabe, teremos filhos…
— Dª Virinha, sempre a falar sozinha? Vá, são horas de mudar a fralda, e tomar o remédio!

— Deixa-me! Eu não estou louca, mulher!...O meu noivo vem-me buscar! Vamos festejar os setenta anos de noivado à luz das velas! 

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O sonho de Gertrudes Matraca

Aquela galinha era gorda e grande…
Tão grande, tão gorda, que Gertrudes Matraca gabava-se que aquela galinha iria ganhar fantásticos prémios…
Gargalhadas sarcásticas rebentaram.
Gertrudes levou o galináceo à televisão. Gananciosa, sonhava em grande…
Cheia de genica, a galinha soltou-se, girou pelo estúdio, guindou-se a uma geringonça. Pânico geral. Gritos. Lamentos.
Sem glória, estrebuchava o galináceo, sob aquela geringonça assassina.
Gertrudes regressou, a galinha ensacada, gorados seus sonhos grandiosos.

Os gemidos abafou-os, partilhando genial guisado pela vizinhança.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A paixão de Gebo Garrinchas

Gebo Garrinchas andava no gamanço.
A escangalhada garagem, poiso de Garrinchas, rebentava de garrafas de Whisky. Garrinchas surripiava-as à gatesga, para gáudio pessoal. Emborcava gamelas daquele néctar, gorgolejando ruidosamente.
Intervaladamente, gargalhava, descobrindo gengivites roxas. Entumecidas.
Gotejavam os dias. Garrinchas, subitamente, mudou. Gerberas, goivos e gardénias atravancavam a garagem.
Tremiam-lhe as gâmbias, o coração galopava-lhe no peito. Garrinchas amava!
Sonhador, gizava planos futuros.
Guarnecido de gerberas, goivos e gardénias brancos, sorria Gwyneth Poltrow  em  glamoroso calendário da Goodyear.


quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Amor impossível

Com gestos graciosos, Guilhermina pôs o gira-discos a tocar.
Gustavo aproximou-se, gingão.
Gostava de gostar assim, de Guilhermina, quando nela galopavam melódicas emoções. Gulosamente. Conhecia-lhe o génio. Mas não guardava ressentimentos.
Das garras de Gustavo, no rosto, Guilhermina ostentava um gilvaz profundo. Ah! Guerras antigas! Outrora, Gustavo atacava Guilhermina sem hesitações. Gabirus rondando, enervavam-no.
Gustavo deixara-se da gandaíce. Por amor. Guilhermina!
Saltou. Galante, espichou-se gentilmente no colo grandioso de Guilhermina, com genuína delicadeza.
— Sape, gato!
— Miaaaaaaau!... Miaaaaaau!...