"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Equívocos

 Ajeitou o colar em frente ao espelho. Acomodou o cabelo com a mão direita, beliscou as faces, mordeu os lábios. Lembrou-se de um bâton que havia comprado ainda a mãezinha era viva. Não se atrevera a usá-lo à frente dela, que criticava aquelas garridices, mas às vezes, no seu quarto, experimentava-o, e imaginava-se a sair com os lábios rosados, e os olhares que atrairia. Foi procurá-lo numa caixa que estava dentro de uma gaveta da cómoda, passou-o pelos lábios, e sorriu para o espelho. Num impulso, abriu ligeiramente a boca, e colou-a ao espelho. Afastou-se um pouco, e contemplou o contorno dos seus lábios. De repente, pegou num bocado de papel higiénico e começou a esfregar a mancha no espelho, com gestos que denunciavam irritação.
Pegou nos óculos e, no momento em que os ia colocar, hesitou. Abriu a caixinha que estava em cima do armário da casa de banho, e guardou-os cuidadosamente. Não ia precisar dos óculos para ir ao café. Era míope, mas conseguia ver muito bem ao perto. Os óculos deformavam-lhe os olhos, que até eram bonitos. Ficava com um olho muito maior do que o outro, com um ar completamente patético. Ia tomar um cafezinho, talvez no café do rés-do-chão do prédio. Ou talvez se aventurasse até mais longe. Logo se veria. Desde que a mãezinha morrera, há três meses, que só saía ao domingo para ir à missa. O Sr. Leonel da frutaria trazia-lhe a casa o que ela encomendava pelo telefone. De resto, fora gastando o que havia na arca e na despensa. Mas agora, outro galo lhe cantaria. Era tempo de começar a viver a sua vida. “ Hoje era o primeiro dia do resto da sua vida”, como dizia a canção. Quem sabe, se ainda estaria em tempo de…não era de se deitar fora...Nunca lhe faltaram pretendentes, isso não…Mas a mãezinha…nenhum era suficientemente bom…e ela fora murchando…Ai o António carteiro!…tão bonito, tão bom rapaz, a bichanar-lhe palavrinhas aos ouvidos quando vinha entregar a renda do quintalito que a mãezinha lhe entregara para cuidar. Uma vez apanhou-os, ele encostadinho ao seu ouvido a murmurar-lhe doçuras, ela derretida de gozo, foi um caso dos trabalhos…Nunca mais o António carteiro foi entregar as rendas…Passou a depositá-las no banco. Nessa altura ainda a mãezinha vendia saúde…
Em vez de tomar o elevador, desceu as escadas a pé. Desde que ficaram encurraladas no elevador, devido à falta de eletricidade, ela e a mãezinha, nunca mais desceu de elevador. Chegou ao fundo das escadas com o coração a palpitar, não sabe se do cansaço, se da ansiedade…
Aproveitou para ver o correio. Como quase sempre, só publicidade. Não! Havia um envelope! Azul claro, mais pequeno que os envelopes convencionais. Ercília virou-o de um e outro lado. Estranho! Não estava endereçado, nem tinha remetente. Abriu-o. Dentro, estava um bilhetinho, da mesma cor do envelope. Estava escrito ao computador, em letra que imitava a manual.
Minha querida:
Tenho esperado por si toda a minha vida! Continuo aguardando um sinal seu para me aproximar.  
Não seja má! Não me despreze! Ainda podemos ser muito felizes! Espero-a na pastelaria “Bom Sucesso”.
Sempre seu,
A assinatura era um rabisco ilegível.
Ercília sentiu um calor atingir-lhe as faces e o corpo todo. Olhou em volta, mas não havia ninguém. Antes assim. Então ela era a querida de alguém sem saber? Alguém esperara por ela toda a vida… “ Ainda podemos ser felizes”
A pastelaria “ Bom sucesso” ficava a dois quarteirões…Pois bem: não era tarde nem era cedo. Resolutamente meteu pés ao caminho.
Porém, sentia-se estranha. Nem sabia caminhar direito na rua, sem o apoio da mãezinha, o seu braço enfiado no dela…
Uma lagrimazinha apareceu-lhe no canto do olho…Não era altura para dramatismos. Já chorara tudo o que havia para chorar. Agora era preciso voltar à vida. À sua vida. Até ali vivera a vida que a mãezinha lhe impusera.
Ergueu a cabeça, endireitou o corpo, e avançou, decidida. Pouco depois estava em frente da pastelaria “ Bom sucesso”. Entrou, sentou-se numa mesa perto da entrada, respirou fundo, e só depois o seu olhar varreu os clientes. A maioria pessoas de meia-idade, como ela, e um grupo de quatro raparigas numa mesa.
Havia dois homens sozinhos. Um já bastante velho, que não tirava os olhos do jornal. O outro, olhava para a porta, disfarçadamente. Era certamente o homem do bilhetinho. O tal que esperara por ela toda a vida. 
O coração de Ercília bateu descontroladamente. Era elegante, e parecia educado. Usava um blazer de bombazina castanho, e umas calças claras de sarja. Ercília desviou o olhar. O empregado aproximou-se e ela pediu um café. Atreveu-se a levantar os olhos, e continuou a sua observação, tentando ser discreta. O homem tinha um bigodinho grisalho com umas pontas bem aparadas. Quase completamente calvo, mas uma calvície que lhe assentava bem. Agradava-lhe o que via. Percebia-se bem que estava nervoso, como ela. Faria de contas que não tinha lido o bilhetinho. Ele que viesse falar com ela. Bebeu o seu café, aparentando uma calma que estava muito longe de sentir. Em seguida, pediu um copo de água, e foi bebendo calmamente. Mas ele, nada. Era tímido, certamente, ou gostaria de fazer as coisas à antiga. Ai, como a mãezinha o teria apreciado! Ele deitava os olhos na sua direção. Parecia-lhe que sorria. Sorriu-lhe, também. E baixou os olhos. Quando os levantou, ele dirigia-se para a sua mesa. Ercília sentiu-se desfalecer. Quando estava perto dela, soltou um profundo suspiro, mas não parou. Saiu.
Ercília ali ficou, a respiração ofegante, como alguém que acabasse de fazer uma longa corrida. Esperou, acalmou-se, pagou, e saiu. Nessa noite, não dormiu. Pela cabeça passaram-lhe as imagens de tudo o que se passara. Certamente que ele não tivera coragem de a abordar. Mas ela não tinha pressa. Ele prometia-lhe a felicidade. Quem já tanto esperara, não se importava de esperar um pouco mais para ser feliz. “ Saber esperar é uma virtude”, era um dos lemas da mãezinha. Levantou-se muito cedo, e começou a tirar medidas às janelas. Iria colocar cortinados novos na sala e no quarto. Era muito importante renovar o quarto, comprar móveis novos, sim, sobretudo uma cómoda nova, para as roupas dele, e…claro, uma cama de casal. Estava fora de questão utilizarem a cama que pertencera aos paizinhos.
A manhã passou-a a fazer limpezas profundas, a colocar no lixo trastes de que nunca tivera a coragem de se desfazer.
Almoçou num alvoroço, mal conseguindo esperar pela hora do café na Pastelaria " Bom Sucesso”. Quando entrou, já ele estava lá ao fundo, na mesma mesa onde se sentara no dia anterior. Ercília sentou-se à entrada, mesmo virada para ele. Desta vez, sentiu-se mais arrojada, foi olhando para ele sem desviar o olhar. Como no dia anterior, ele sorriu-lhe discretamente. Ela sorriu-lhe abertamente. Questionava-se se seria desta vez que ele teria coragem para lhe falar. Mas agradava-lhe este namoro discreto, esta troca de olhares, como uma preparação para cavalgadas mais arriscadas. De repente ele levanta-se, e ela pensa: é agora.
Mas não. Partiu, deixando-a como a uma criança a quem tiraram um brinquedo. Estaria a pô-la à prova?
Nessa noite, Ercília sonhou, sonhou e sonhou. Sonhou com o seu amor, com uma vida venturosa de profundos arrebatamentos amorosos, e acordou feliz, alagada em suor. E tomou uma decisão: se ele não viesse falar com ela, tomaria a iniciativa.
Entrou na pastelaria, olhou em volta, e viu-o sentado ao fundo da sala, numa mesa protegida pela penumbra. Ercília não queria acreditar nos seus olhos: na mesa do seu noivo, a sua vizinha do 2º andar, uma lambisgoia divorciada, de costumes duvidosos, olhava-o como se o quisesse engolir. E ele, com um ar perfeitamente idiota, não tirava os olhos dela, as mãos dele sobre a mesa, encaixadas nas dela.
Sem se poder conter, Ercília avançou para eles, levantou a carteira, e malhou, malhou, malhou em cima dele.
Felizmente para Ercília, o caso resolveu-se sem recurso aos tribunais. Teve que apresentar um pedido público de desculpas, escudando-se no estado de choque pela morte recente da mãe, e pagar uma indemnização ao queixoso.
Nunca mais saiu de casa. E quem olha para aquele terceiro andar, pode ver, pendurados nas janelas,  uns farrapos velhos comidos pelo sol, que outrora já foram cortinas.