"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A vingança serve-se fria

Sabia bem o quanto era o alvo da chacota deles todos. Gozavam com a sua fala arrastada, com aquele som que lhe saía como se tivesse o nariz entupido, com as palavras que se lhe enrolavam na língua e que ele não conseguia pronunciar como os outros. Gozavam com a sua falta de jeito, com a lentidão com que fazia as coisas, com os pensamentos que se lhe atropelavam e que não conseguia explicar. Sabia muito bem que quando o convidavam para um copo e uma sardinha na taberna do Ti Zé das merendas, era só para se rirem dele. Deixá-lo! Fazia-se teso, como se aquelas gargalhadas de escárnio se lhe não entranhassem na pele, nos ouvidos, no cérebro, e não lhe ficassem a martelar na cabeça, impedindo-o de dormir logo, como gostava.
Um dia…um dia…havia de se vingar…bem, ele lá se ia vingando à sua maneira, rindo-se com eles das suas próprias incapacidades. Mas, pelo menos, não se deitava com a barriga vazia. Dava-lhes o que eles queriam. E recebia o que lhe fazia falta. Mas eles é que perdiam, sem se aperceberem que até exagerava nas palermices, inventava coisas que não fazia, armava-se num trapalhão ainda maior do que era. E ao arrancar-lhes tantas gargalhadas, que alguns até diziam que se mijavam a rir, tinha a certeza de que o garrafão se ia inclinando generosamente para lhe encher o copo sempre que estava vazio, que podia surripiar à vontade as lascas de bacalhau, as iscas de presunto. E exagerava nos olhos arregalados, na cara de parvo com que Deus o castigara, arrancando gargalhadas daqueles alarves. No fundo, era a sua maneira de sobreviver, tal como fazem os palhaços, no circo, ou os atores no palco.
Ouvia-lhes os comentários nas costas, pensando talvez que os não ouvia, ou não percebia o alcance do que diziam:
__O Tó Tonto é cá um personagem!
Pois bem! Que pagassem pelo tanto que se divertiam.
Um dia convidaram-no para uma jantarada. Tinham caçado um javali. Convidaram-no para ser o bobo que ia diverti-los a todos. Já sabia o que lhe iam perguntar: como tinha morrido o avô.
Ai o avô fazia-lhe tanta falta! Agora já não tinha ninguém! Tinha morrido a única pessoa que o amava, que o conhecia por dentro e por fora, a única pessoa com a qual não precisava se fingir, de se fazer mais tolo do que era. Era tão carinhoso para ele! Mas às vezes, também um tanto impaciente. Dormiam juntos, na mesma cama. No inverno, debaixo dos cobertores puídos, confortavam-se com o calor do corpo um do outro. Durante o último mês, andara a arrastar-se pelos cantos, chorava com uma criança, sem vontade de rir, de comer, de dormir. E eles divertiam-se, quando lhe perguntavam como tinha morrido o avô e ele se perdia em pormenores, contando tintim por tintim a agonia do avô, trazendo até à praça a sua intimidade. Bem via como todos se riam, embora se fingissem muito pesarosos, mas ele não conseguia deixar de falar nos últimos dias da existência daquela alma que tanto o amara…Chamavam-no para ao pé deles, e riam-se nas suas costas com o seu relato. Não sabe como se aguentou. Só bebia, e, ao outro dia, quando acordava, todo vomitado, nem sequer sabia como fora parar à cama.
E agora convidavam-no para se divertirem à sua custa e do avô. Se pensavam que iam levar a melhor, estavam enganados. Esperavam que ele chorasse baba e ranho, que ficasse muito dolorido, enquanto eles enfardavam do javali.
Ouvia-os cochicharem. Houve quem perguntasse que fazia ele ali. Que já eram bocas de mais, que davam bem conta do recado sem aquela boca glutona a roubar-lhes os bocados mais apetitosos. Que não se amofinasse, responderam, que ele ia desatar a choramingar e não ia comer nada. Fingiu-se de tolo, como convinha, papel, aliás, que ia muito bem com ele.
Quando se atirou a um bom naco de javali, bem viu pelo canto do olho as cotoveladas que alguns trocaram, numa chamada de atenção para o porem na ordem. Veio então a pregunta que ele já esperava.
__Então, Tó, conta lá, como é que morreu o teu avô?
E a resposta veio rápida e concisa, tão rápida quanto a sua deficiência na fala lhe permitia:
__ De repente!
E ponto. E, enquanto os seus anfitriões se refaziam da estupefação, enterrou os dentes no javali, e foi emborcando os copos de tinto. E, naquela noite, ninguém mais lhe arrancou uma palavra, enquanto se não sentiu completamente saciado.
Foi a sua vingança.