"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

"Renascer"





Nem sabia por que cedera ao impulso de estender a roupa. Tinha decidido nem sequer a lavar. Deixá-la lá, no cesto da roupa suja, para ele sentir a sua ausência. Mas não fora capaz. Arrumara tudo, como era seu hábito. Queria deixar tudo impecavelmente limpo, como sempre fizera durante aqueles quinze anos. Apesar das angústias, dos desamores, das desatenções… das depressões.
Ia-se embora. Partir. Abandoná-lo. Deixar para trás aquela vida de morta-viva. Ia-se embora enquanto era tempo, enquanto ainda tinha forças para trabalhar. Ali sufocava e estiolava. Não aguentava os dias sempre iguais, monótonos, sem uma palavra de apreço. Ele já não a via. Em tempos ela ainda se esmerara em jogos de sedução: uma blusa nova, um novo penteado, um perfume diferente…mas nada o fazia sair daquele mutismo…olhava para ela, distraído, e não a via. Cansara-se.
Para já, ia alojar-se na casa da prima que morava nos arredores da aldeia, junto à paragem das camionetas. No dia seguinte, de madrugada, seguiria para Lisboa, onde Daniela lhe garantira alojamento e apoio.
Perdida a esperança de engravidar, o que talvez trouxesse algum vigor àquela relação moribunda, o melhor era partir. Levava pouca coisa. Colocara alguma roupa num saco que guardara na casa da prima. O que lhe interessavam as coisas? Aliás, em casa sempre tivera tudo. Ele comprava tudo o que era necessário, até algumas extravagâncias… Mas fora-se esquecendo de prover o alimento da sua alma. Ele confundia o sexo com a sua necessidade de ternura, carinho, conversa, estímulo, sorrisos…E ela precisava de tão pouco…bastava que olhasse para ela, que a visse, e reparasse na blusa nova, no penteado diferente, que lhe dissesse que era bonita, que a amava… que se chegasse junto dela carinhosamente, sem a ideia preconcebida de a arrastar para a cama.
O que ela fazia em casa, qualquer uma faria…Que contratasse uma empregada…No fundo, não era o que ela era, empregada para todo o serviço?
Quando chegasse, no Sábado, correria a casa toda à sua procura e não a encontraria…ficaria preocupado? Aborrecido? Raivoso? Ciumento?
Ora, que lhe interessava? Ficasse lá como quisesse…
Uma nuvem de tristeza ensombrou-lhe os olhos. Suspirou fundo. Tinha pena! Claro que tinha pena! Dela, dele, da vida deles, de…
Ora! Não podia deixar-se amolecer. A decisão estava tomada. E em Lisboa, iria trabalhar como auxiliar no infantário que a Daniela dirigia. Era o que ela sempre desejara! Em solteira, trabalhara com crianças! Mas ele quisera que ela ficasse em casa! Olha agora! Ficar em casa a contar os segundos, as horas, as decepções mensais nas cuecas manchadas… Que homem antiquado! Na altura, os argumentos dele convenceram-na, e pressentiu até algum despeito nas suas amigas...Ele ganhava mais do que o suficiente, não queria que se cansasse a cuidar dos filhos dos outros, mas que se preparasse para cuidar dos próprios filhos…Enfim! Ilusões!
De repente, lobrigou um vulto na janela da cozinha. Sobressaltou-se. Era ele. O coração bateu-lhe no peito.
O receio de que se apercebesse do que se preparava para fazer, roubou-lhe as molas das mãos, e a toalha caiu no chão. Ficou manchada. Era preciso lavá-la de novo. Mas…lavá-la, para quê? Isso já nada interessava, agora que a sua decisão estava tomada.
Ia fingir que não se dera conta da sua chegada.
******
Rosa saiu do banho de imersão perfumado. Nem queria acreditar no que estava a acontecer! Durante anos, sonhara com um momento como aquele!
Tinha que telefonar às primas e torná-las cúmplices do seu segredo. Ele não podia saber o que ela estivera prestes a fazer!
Convidara-a para irem jantar fora, e dançar!... Dissera-lhe que estava linda, e olhara-lhe os olhos com promessas, e…Ai meu Deus! Sentia-se uma adolescente! Que parvoíce! Ao fim de quinze anos!
Já pedira à irmã que a viesse maquilhar, e fora desencantar no baú aquele vestido de cerimónia que nunca chegara a usar! E ainda lhe servia! Ia pôr-se esplendorosa! Cheirava a paixão no ar! Não é que sentira um arrepio pela espinha, quando ele lhe dissera que estava linda? Ela sabia bem que não era bonita, mas a beleza está nos olhos de quem a vê e ele olhou, e viu-a bela aos seus olhos. O seu homem!
Neste momento não pôde conter-se e o dique aprisionado em seu olhar rompeu em águas mansas, salgadas e libertadoras. As águas correram e limparam as réstias de resistência que ainda moravam lá bem no fundo de si mesma.
Decidiu entregar-se e calar de vez o grito de alma emudecido durante anos na flor dos seus lábios. Olhou para o espelho e gostou do que viu. Sorriu para o rosto que o espelho lhe devolvia. Aquele sorriso acendeu-lhe primaveras no corpo. Viu as horas. Tinha que se despachar. Bateu as palmas. Sentia-se rebentar de excitação.
Nos escombros do seu coração começou a despontar uma tenra e viçosa esperança. Iria regá-la diariamente com ternura, cuidar para que nenhum vento lhe vergasse o caule tenro ainda menino.

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