"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

terça-feira, 24 de julho de 2018

No fundo do poço

Ora, isto não é nada!...Estou lá agora a esconder…É só porque…não é uma coisa bonita de se ver… e há pessoas a quem faz impressão…Ai não se impressiona? Está bem, pronto! Já, já tratei, já! Então, desinfetei com álcool, Bétadine, vê!...Hã…dói-me um bocadito, agora já não é nada, mas na altura…não, menina, precisa lá agora de pontos…ia lá para o hospital por uma coisa destas?! Falta-lhes lá a eles o que fazer…Isto passa! Daqui a bocado, para fazer o jantar, o meu Abel ata-lhe aqui um plástico, e pronto! Não!... menina, foi lá agora ele! O meu homem é um berrão, lá isso é, mas, graças a Deus, nunca me tocou nem com um dedo!...Ameaças já fez muitas, isso fez…às vezes cresce para mim de uma maneira…Mas é só da boca para fora…que eu também lhe abro os olhos…Não me fico!... Olhe, sabe, são coisas que acontecem…a gente às vezes está onde não devia estar, pronto! E depois…Isto é uma vida…Para que hei de estar agora a contar coisas de quem nem me quero lembrar? Para quê? Isto passa, pronto!...
Ah! menina, ele às vezes fica assim doido, doido, parece que tem o diabo no corpo, nem o conheço…bem, a bem dizer, já há muito tempo que ele não é o mesmo…E se eu lhe tenho amor! Criei-o, então, desde pequenino, a ele e à irmã! Eram tão meus amigos! Quem havia de dizer que ele se havia de tornar neste diabo? Eu é que os criei! Pois, coitadinhos, quem havia de lhes valer?! Sem mãe, e o pai não presta para nada, um criminoso…Ele nunca mais quis saber do rapaz…Nem os animais… Então, o pai, aquele excomungado, esteve na prisão, bem pouco tempo, cá para o meu gosto…mas isto agora é assim! Eles fazem-nas, passam um tempito na prisão e depois vêm cá para fora, infernizar a vida da gente!
Então… olhe, acordou lá para as três da tarde…parecia doido… andou não sei lá por onde até de madrugada, depois de manhã, claro…não tem forças para se levantar…ai emprego…não! Às vezes aparece aí com muito dinheiro, olhe, eu não sei onde o arranja, e compra sapatilhas, camisolas, roupa de marca, tudo do bom, que custa uma fortuna, tem um bom telemóvel, eu não sei mexer naquilo…uma…ai, com é que se diz…uma dessas coisas grandes para ouvir música, faz um estardalhaço, que a gente fica com uma dor de cabeça…isso! E vem com umas caixas que guarda no quarto, não sei lá o que têm as caixas, ele fecha a porta do quarto à chave, o meu Abel já lhe disse umas poucas de vezes que não quer a porta do quarto fechada, mas é como quem está a falar para uma porta. Mas assim com vêm, também desaparece com elas num instante… Mas como lhe estava a contar, o rapaz queria dinheiro, à minha volta, “ó avó, onde é que tens o dinheiro, e eu não tenho, não tenho, e ele onde está a chave da gaveta? Não sei, não sei dela…, e eu com ela aqui por dentro, pendurada neste fio ao pescoço, olhe, pegou no martelo da caixa das ferramentas do avô, e começou a bater com ele na gaveta da mesinha de cabeceira onde eu guardo o dinheiro para as compras, para comermos, está a perceber? A reforma do meu Abel fica na Caixa. Eu é que me fui lá meter!... Pois não sei como foi…e deu nisto…Ai menina! Desculpas? Pediu lá agora! Isso não é com ele! Olhe, depois desapareceu…não sei para onde foi… ele ainda recebe um subsídio, mas estafa-o num instante, sabe? Depois, claro…mas eu não lho dou…só uns troquitos, de vez em quando…O meu Abel nem sonha !...Ai! então eu ia lá chamar a polícia? Para quê? Violência?! A menina sabe lá o que é violência! Violência era aquela entre o meu genro e a minha filha…Ai! Minha pobre filha!...Cá para mim o rapaz é um revoltado por isso mesmo! E a vida da minha filha, ninguém lha volta a dar…e sabe, ninguém fica na mesma depois de ver o pai dar um tiro na mãe mesmo à frente dos olhos, quem é que aguenta uma coisa destas e fica assim…normal, não é?! Devia ficar na prisão para toda avida, assim é que era…desgraçou a vida da minha filha, a dos filhos e a nossa…Ora…a rapariga, nunca mais soube dela…o maldito veio buscá-la quando saiu da prisão…já me disseram que a viram lá em Lisboa, que anda na vida, e eu, olhe…nem sei…que o pai era capaz de a meter a ganhar para ele, disso não tenho dúvida nenhuma, isso não tenho…  
Agora o rapaz…se a polícia o apanhasse aqui era uma desgraça!...Ele nem sequer pode pôr aqui os pés, menina…ele tem que estar afastado de nós nem sei quantos metros, ou quilómetros, foi o que o juiz disse da última vez que…
Bem, mas isso agora não vem ao caso…Hum! Arranjaram-lhe um emprego, mas pensa que se aguentou lá?! Os compinchas não lhe largavam a porta…Aqui não entram, mas assobiam de longe, e ele fica todo alvoraçado, sai porta fora, e às vezes está dias seguidos sem aparecer, olhe, eu fico aqui, com o coração num cesto… Quando volta, se lhe pergunto alguma coisa, abre-me umas goelas, que eu sei cá…que me meta na minha vida… Eu da vida dele nada sei, ele a mim não se confessa!... Quem?! Essas são umas invejosas, umas más-línguas! Não podem ver o rapaz bem vestido, que anda logo na droga! Credo! Não! Não acredito! Já, já esteve na prisão, mas olhe, se quer que lhe diga, já nem sei bem…acho que foi por andar à pancada, parece-me…lá o desafiaram, e ele respondeu…ele não é para ficar calado, lá nisso, tem a quem sair, Deus me perdoe…
Bem… às vezes o meu filho vem aí…é o meu filho do meio, o meu mais velho vive em Sacavém…
Ó mãe, vossemecê não pode ter aqui o Rafael, feche-lhe a porta, ele que durma na rua!...Então mas eu lá tenho coragem, menina, diga-me lá, eu hei de fechar a porta ao rapaz? Ele não tem mais ninguém, como já lhe contei, ele era tão meiguinho…E fecho-lhe a porta como?! Eu lá lhe posso fechar a porta?! Ele tem uma força!...Olhe que noutro dia empurrou-me, fui bater com as costas ali naquelas grades, está a ver? Fiquei com os ferros todos marcados nas costas… o meu homem andou a esfregar-me com um produto que comprou na farmácia, isto já vai fazer uns dois meses…e ainda cá tenho dorido…estas coisas levam o seu tempo…

Ai, meu Deus, ai meu Deus, não sei quem nos há de valer!...

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