"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Enquanto é tempo

Hesitei. Tive que respirar fundo, pensar…
Naquele momento, não me lembrei da minha idade. Não, não me ocorreu mentir, como fazem muitas mulheres quando são questionadas sobre a sua idade…simplesmente, depois de dizer o meu nome, o que fazia, por que estava ali, a minha idade real pareceu não jogar com o resto. Nem com o resto, nem com os outros elementos do grupo daquela ação de formação. Estávamos todos no palco do auditório, em roda, na posição de lótus, cada um apresentando-se aos outros. A mim coube-me terminar a roda, porque chegara atrasada. E engasguei-me na informação da minha idade. De facto, eu era a mais velha daquele grupo. Mas isso não me ocorreu naquele momento. Esta reflexão só posteriormente a fiz. Só que aquele número de dois dígitos que pronunciei hesitante, depois de uma ligeira pausa, deixou-me uma sensação estranha de descasamento.
Tal como os outros, eu estava ali para aprender, porque amo a leitura, a escrita, as palavras, e queria desenvolver competências que me permitissem comunicar melhor. A maior parte dos elementos do grupo, tem ainda um caminho longo a percorrer junto dos seus alunos. Eu estou na fase terminal. Não que tenha já atingido a idade que agora é exigida para a aposentação. Mas porque atingi a meta, que, há já alguns anos, tracei para fazer outras coisas que adoro fazer. Quando essa meta foi traçada, a idade e os anos de serviço que agora tenho dar-me-iam direito à remuneração por inteiro. A penalização enorme que me vai ser aplicada, em termos económicos, não me esmorece o entusiasmo e a determinação. Mas não posso deixar de lamentar o facto de, se tivesse ficado pelo magistério primário, como o meu pai desejava, já estar aposentada há quatro anos, e sem penalizações, como aconteceu com amigas que frequentaram comigo os bancos da escola, com a mesma professora, mas que ficaram pelo magistério primário, porque não quiseram ir mais longe, ou consideraram não ter capacidades para isso, quer económicas, quer intelectuais. Também as capacidades económicas da minha família eram débeis, sobretudo para criar quatro filhos, e proporcionar a todos as mesmas oportunidades. Mas a minha mãe considerava que um “curso” era uma ferramenta para a vida, e, se haviam de nos deixar bens, deixar-nos-iam o canudo. E a família mudou-se para a cidade, para que todos pudéssemos tirar um curso. E tirámos. Só víamos o meu pai ao fim de semana. Eles, os meus pais, não tinham mais que a quarta classe, mas fizeram dos quatro filhos doutores. O meu querido avô, que nos ajudou como pôde, há-de rebolar-se no túmulo, ao aperceber-se que a sua neta “doutora,” que tanto queimou as pestanas, a estudar durante dezasseis anos, vai receber muito menos dinheiro ao fim do mês, que as amiguinhas dela, que apenas estudaram nove.
Escolhi ser professora com todo o entusiasmo. E sou. Mas agora há outras coisas que desejo fazer, com o mesmo entusiasmo com que escolhi a minha profissão. Quero contar histórias, mediar leituras, dizer poemas, escrever os textos que adoro escrever, ter mais disponibilidade para o teatro. Ao fim de trinta e seis anos de ensino, sinto que já dei o que tinha a dar na minha profissão, tal como está organizada neste momento. A burocracia afoga-me. Os quilos de papelada desnecessária que é preciso preencher, tiram-me o sono. Os alunos que não querem aprender, que parecem ter “bichos carpinteiros”, que acham que basta estarem nas salas de aula de corpo presente (de corpo, que a cabeça, essa nem se digna responder à chamada), para passarem de ano, que desrespeitam os adultos, revoltam-me. Estou cansada. Sinto que devo retirar-me com alguma dignidade. Enquanto há alunos que me agradecem por tê-los motivado para a escrita, ou para a poesia, por ter despertado neles o prazer pela leitura, ou pelo teatro, que se lembram das minhas aulas divertidas. Daqui a algum tempo, apenas restará uma velha amarga, sem paciência, prisioneira do sistema, com lapsos graves de memória, sem genica para manter na ordem os meninos que carecem que se lhes mostre quem manda na sala de aula, que em breve poderá ser alvo de chacota dos meninos malcriados.
Quero tirar prazer daquilo que quero fazer. Quero que quem me quiser ouvir, o faça por prazer. Será pedir demasiado?

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