Depois das aulas, encaminharam-se para a margem do rio. Iam todos a dizer os disparates do costume, só ele ia calado, a pensar na vida.
Mais uma vez, sentia uma enorme dor no meio do peito. Uma dor que não era como quando lhe doíam os dentes, ou a barriga, mas que era ainda mais forte, misturada com uma grande tristeza. Não! Não era como as outras dores…era muito, muito pior…fazia-o desejar estar sempre a dormir. E era isso que faria, se não fossem os sonhos… Os sonhos! Eram mais pesadelos…Mas nem sempre tinha pesadelos…às vezes conseguia dormir mesmo, como uma pedra…e nesses momentos esquecia…Não sabia como encontrar solução. Naquele momento, parecia-lhe que não havia, para o seu problema. Sentia-se um fraco. Apetecia-lhe nunca mais voltar a pôr os pés na escola. Mas depois vinha a guarda buscá-lo a casa, ele sabia…e o subsídio que ajudava a manter a família, ia à vida… Só se fugisse…para muito longe, onde ninguém o encontrasse…
Se não fossem a Sónia, a Gina e o Augusto… e o Leonardo, claro, o seu irmão gémeo…Às vezes ele armava em parvo, mas eram amigos…
À saída da escola, antes de voltar para casa, gostava de passar por ali. Gostava de atirar pedras ao rio, ver o quão longe elas podiam chegar…ou de ficar a apreciar os remoinhos que as pedras produziam, e a luz que entrava pelas águas adentro…as nuances das cores…verde-claro, verde-escuro, cinzento, azul-escuro, quase preto. Perdia-se a olhar para os reflexos distorcidos das árvores nas águas, que caminhavam barulhentas e imparáveis para o mar… Ao ouvir aquele cantar estrepitoso, esquecia parte dos seus problemas, serenava...
A Sónia… gostava dela. Ainda não namoravam, mas estava quase… o dia de hoje era decisivo…Por isso estavam todos, para disfarçar…De outra maneira não conseguia apanhá-la ali. Ela não largava a Gina! Mas o António ia também tentar a sua sorte. Toda a gente sabia que ele gostava da Gina…até a setôra de Português tinha dado conta!…
Boa vida era aquela, entregarem-se à brincadeira sem ninguém a chatear…não queria pensar no que o afligia, agora queria era embriagar-se de brincadeira, e…talvez…abraçar a Sónia, abraçá-la, beijá-la, apertá-la, como sonhara fazer tantas e tantas vezes, quando, à noite, debaixo dos cobertores, a imagem dela se vinha misturar com o choro que rebentava sem querer, depois de perseguido por memórias de episódios atulhados de humilhações e ameaças de colegas, de funcionários a gritarem pelos corredores, de professores autoritários e cegos ou tão permissivos que não ousavam estabelecer a ordem, receosos, também eles, de vinganças descarregadas nas pinturas dos carros. E alcançava alguma paz quando, assim abraçado à Sónia, acabava por adormecer, exausto, percorrido por um frémito quente e libertador.
Ia mostrar-lhe os recantos da mata, e, se tudo corresse bem, selariam o namoro à beira do rio.
******************************************
Chico foi tirando a roupa lentamente: primeiro a tee-shirt, depois os ténis, as meias. Enrolou-as e colocou-as vagarosamente dentro dos ténis. Arrumou-os um ao lado do outro.
Os companheiros riram-se.
Aquilo era tudo estudado. O Chico apelava a um momento, por mais breve que fosse, de protagonismo. Gostava de se sentir o herói, admirado, já que não era capaz de resolver as situações na escola que tanto o preocupavam e humilhavam. Mas aqueles quatro amigos eram fixes!
Depois tirou as calças, e, sem pressas, com arrepios de frio, foi entrando nas águas revoltas do rio.
— Mas que estás tu a fazer? Pára!
— Ainda ficas doente! Depois eu é que as pago! — avisou o Leonardo.
Leonardo era três minutos mais velho que o irmão, e, à conta disso, fora muitas vezes chamado à vara por não ter impedido algumas travessuras do Chico.
Naquele momento o riso foi morrendo em tempos desencontrados no rosto dos companheiros. Já completamente apagado nos lábios dos três miúdos, ainda a Sónia mantinha um resquício de sorriso, antes de um grito que irrompeu da sua garganta.
— Não sejas parvo, Chico! Pára! Volta!
O pânico que explodiu nas palavras da Sónia contagiou os outros miúdos. Os gritos tumultuosos e indisciplinados romperam o ar, atravessaram as folhas dos choupos, os ninhos abandonados, e perderam-se para lá das nuvens.
Chico deu duas braçadas, mas rapidamente se apercebeu de que o lodo do rio não lhe deixava espaço para nadar. E a corrente era ali muito forte. Os seus movimentos começam a ser cada vez mais desordenados e desesperados, as braçadas descoordenadas. Tenta manter a cabeça fora das águas, mas começa a cansar-se. Os garotos vêem o seu corpo desaparecer no interior do rio, enquanto gritam o seu nome.
As lágrimas, os soluços, a incredulidade submergem-nos, ao mesmo tempo que assistem, impotentes, ao desaparecimento do amigo. Leonardo, o irmão gémeo do Chico, começa nervosamente a largar os ténis. Os três garotos adivinham-lhe as intenções e agarram-se a ele, manietando-o. O corpo do Chico vem ainda à superfície mais duas vezes, em sítios diferentes do rio, arrastado pelas águas. Deixam de o ver. Sónia já não tem voz para continuar a gritar.
Chico sente o seu coraçãozinho bater, num pânico desenfreado. Não era isto que ele desejava. Pretendia apenas assustar os companheiros…para eles saberem que não era nenhum cobarde… Mas agora sente o arrependimento a possuí-lo. Não tem forças para lutar com as águas. Os membros entorpecidos parecem já não lhe pertencer. Imagens da mãe, do pai, dos irmãos, dos colegas da escola, da cadelita rabina, que o recebe sempre que chega da escola, e o persegue até à porta da cozinha…perpassam-lhe à frente. Sabe agora que nunca mais vai voltar a ser maltratado, ninguém mais lhe vai fazer mal. Relembra o beijo roubado à Sónia, na mata, quando ficaram os dois para trás…Sente-se empurrado cada vez mais para o fundo. A oração que a avó lhe ensinara começa a surgir dentro de si: “Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador…” Já não sente medo…Entrega-se. Abre a boca e deixa entrar a água que rapidamente lhe inunda os pulmões. Começa a sentir uma paz infinita… o último esbracejar…Flutua…Lá de longe uma música suave e inebriante vai-se aproximando.
Uma luz azul, forte e brilhante, rasga as águas e o lodo…À sua frente a luz sugere uma figura radiosa, onde sobressai um sorriso infinitamente doce.
Não fala, mas Chico ouve-lhe as palavras no lugar do coração.
— Chamaste-me? Aqui estou. Vem. Estávamos à tua espera.
A figura levanta-o nos braços. Chico sente-se a pairar, leve, como se o seu corpo se tivesse esfumado.
A luz que emana daquela figura que Chico pressente ser o anjo que invocara, começa a alastrar e a inclui-lo dentro dela, ficando ambos envolvidos num gigantesco ovo feito de luz. Ao mesmo tempo, uma onda de plena felicidade, de um amor infinito, vai tomando conta dele.
Porém, fora daquela bolha enorme de luz, de amor e de felicidade, Chico pode observar-se enredado no lodo, como se se tivesse desdobrado e estivesse a ver-se num ecrã. Tremulamente mexe os lábios para fazer uma pergunta, mas as palavras não lhe saem. Ficam apenas no seu pensamento.
— Não te preocupes. É apenas uma carapaça, para que os que te choram possam fazer o luto.
E outra pergunta atravessa-lhe o pensamento.
— Estou morto?
E ouve a resposta no seu coração, da mesma maneira que já tinha ouvido as outras.
— Não!... Acabaste de nascer.
Mais uma vez, sentia uma enorme dor no meio do peito. Uma dor que não era como quando lhe doíam os dentes, ou a barriga, mas que era ainda mais forte, misturada com uma grande tristeza. Não! Não era como as outras dores…era muito, muito pior…fazia-o desejar estar sempre a dormir. E era isso que faria, se não fossem os sonhos… Os sonhos! Eram mais pesadelos…Mas nem sempre tinha pesadelos…às vezes conseguia dormir mesmo, como uma pedra…e nesses momentos esquecia…Não sabia como encontrar solução. Naquele momento, parecia-lhe que não havia, para o seu problema. Sentia-se um fraco. Apetecia-lhe nunca mais voltar a pôr os pés na escola. Mas depois vinha a guarda buscá-lo a casa, ele sabia…e o subsídio que ajudava a manter a família, ia à vida… Só se fugisse…para muito longe, onde ninguém o encontrasse…
Se não fossem a Sónia, a Gina e o Augusto… e o Leonardo, claro, o seu irmão gémeo…Às vezes ele armava em parvo, mas eram amigos…
À saída da escola, antes de voltar para casa, gostava de passar por ali. Gostava de atirar pedras ao rio, ver o quão longe elas podiam chegar…ou de ficar a apreciar os remoinhos que as pedras produziam, e a luz que entrava pelas águas adentro…as nuances das cores…verde-claro, verde-escuro, cinzento, azul-escuro, quase preto. Perdia-se a olhar para os reflexos distorcidos das árvores nas águas, que caminhavam barulhentas e imparáveis para o mar… Ao ouvir aquele cantar estrepitoso, esquecia parte dos seus problemas, serenava...
A Sónia… gostava dela. Ainda não namoravam, mas estava quase… o dia de hoje era decisivo…Por isso estavam todos, para disfarçar…De outra maneira não conseguia apanhá-la ali. Ela não largava a Gina! Mas o António ia também tentar a sua sorte. Toda a gente sabia que ele gostava da Gina…até a setôra de Português tinha dado conta!…
Boa vida era aquela, entregarem-se à brincadeira sem ninguém a chatear…não queria pensar no que o afligia, agora queria era embriagar-se de brincadeira, e…talvez…abraçar a Sónia, abraçá-la, beijá-la, apertá-la, como sonhara fazer tantas e tantas vezes, quando, à noite, debaixo dos cobertores, a imagem dela se vinha misturar com o choro que rebentava sem querer, depois de perseguido por memórias de episódios atulhados de humilhações e ameaças de colegas, de funcionários a gritarem pelos corredores, de professores autoritários e cegos ou tão permissivos que não ousavam estabelecer a ordem, receosos, também eles, de vinganças descarregadas nas pinturas dos carros. E alcançava alguma paz quando, assim abraçado à Sónia, acabava por adormecer, exausto, percorrido por um frémito quente e libertador.
Ia mostrar-lhe os recantos da mata, e, se tudo corresse bem, selariam o namoro à beira do rio.
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Chico foi tirando a roupa lentamente: primeiro a tee-shirt, depois os ténis, as meias. Enrolou-as e colocou-as vagarosamente dentro dos ténis. Arrumou-os um ao lado do outro.
Os companheiros riram-se.
Aquilo era tudo estudado. O Chico apelava a um momento, por mais breve que fosse, de protagonismo. Gostava de se sentir o herói, admirado, já que não era capaz de resolver as situações na escola que tanto o preocupavam e humilhavam. Mas aqueles quatro amigos eram fixes!
Depois tirou as calças, e, sem pressas, com arrepios de frio, foi entrando nas águas revoltas do rio.
— Mas que estás tu a fazer? Pára!
— Ainda ficas doente! Depois eu é que as pago! — avisou o Leonardo.
Leonardo era três minutos mais velho que o irmão, e, à conta disso, fora muitas vezes chamado à vara por não ter impedido algumas travessuras do Chico.
Naquele momento o riso foi morrendo em tempos desencontrados no rosto dos companheiros. Já completamente apagado nos lábios dos três miúdos, ainda a Sónia mantinha um resquício de sorriso, antes de um grito que irrompeu da sua garganta.
— Não sejas parvo, Chico! Pára! Volta!
O pânico que explodiu nas palavras da Sónia contagiou os outros miúdos. Os gritos tumultuosos e indisciplinados romperam o ar, atravessaram as folhas dos choupos, os ninhos abandonados, e perderam-se para lá das nuvens.
Chico deu duas braçadas, mas rapidamente se apercebeu de que o lodo do rio não lhe deixava espaço para nadar. E a corrente era ali muito forte. Os seus movimentos começam a ser cada vez mais desordenados e desesperados, as braçadas descoordenadas. Tenta manter a cabeça fora das águas, mas começa a cansar-se. Os garotos vêem o seu corpo desaparecer no interior do rio, enquanto gritam o seu nome.
As lágrimas, os soluços, a incredulidade submergem-nos, ao mesmo tempo que assistem, impotentes, ao desaparecimento do amigo. Leonardo, o irmão gémeo do Chico, começa nervosamente a largar os ténis. Os três garotos adivinham-lhe as intenções e agarram-se a ele, manietando-o. O corpo do Chico vem ainda à superfície mais duas vezes, em sítios diferentes do rio, arrastado pelas águas. Deixam de o ver. Sónia já não tem voz para continuar a gritar.
Chico sente o seu coraçãozinho bater, num pânico desenfreado. Não era isto que ele desejava. Pretendia apenas assustar os companheiros…para eles saberem que não era nenhum cobarde… Mas agora sente o arrependimento a possuí-lo. Não tem forças para lutar com as águas. Os membros entorpecidos parecem já não lhe pertencer. Imagens da mãe, do pai, dos irmãos, dos colegas da escola, da cadelita rabina, que o recebe sempre que chega da escola, e o persegue até à porta da cozinha…perpassam-lhe à frente. Sabe agora que nunca mais vai voltar a ser maltratado, ninguém mais lhe vai fazer mal. Relembra o beijo roubado à Sónia, na mata, quando ficaram os dois para trás…Sente-se empurrado cada vez mais para o fundo. A oração que a avó lhe ensinara começa a surgir dentro de si: “Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador…” Já não sente medo…Entrega-se. Abre a boca e deixa entrar a água que rapidamente lhe inunda os pulmões. Começa a sentir uma paz infinita… o último esbracejar…Flutua…Lá de longe uma música suave e inebriante vai-se aproximando.
Uma luz azul, forte e brilhante, rasga as águas e o lodo…À sua frente a luz sugere uma figura radiosa, onde sobressai um sorriso infinitamente doce.
Não fala, mas Chico ouve-lhe as palavras no lugar do coração.
— Chamaste-me? Aqui estou. Vem. Estávamos à tua espera.
A figura levanta-o nos braços. Chico sente-se a pairar, leve, como se o seu corpo se tivesse esfumado.
A luz que emana daquela figura que Chico pressente ser o anjo que invocara, começa a alastrar e a inclui-lo dentro dela, ficando ambos envolvidos num gigantesco ovo feito de luz. Ao mesmo tempo, uma onda de plena felicidade, de um amor infinito, vai tomando conta dele.
Porém, fora daquela bolha enorme de luz, de amor e de felicidade, Chico pode observar-se enredado no lodo, como se se tivesse desdobrado e estivesse a ver-se num ecrã. Tremulamente mexe os lábios para fazer uma pergunta, mas as palavras não lhe saem. Ficam apenas no seu pensamento.
— Não te preocupes. É apenas uma carapaça, para que os que te choram possam fazer o luto.
E outra pergunta atravessa-lhe o pensamento.
— Estou morto?
E ouve a resposta no seu coração, da mesma maneira que já tinha ouvido as outras.
— Não!... Acabaste de nascer.
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