"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

domingo, 29 de maio de 2011

A Régua

Na escola, a Rosa era a menina mais castigada por falta de pontualidade. Exagerava, mesmo. Chegava já quando a aula estava em pleno curso. Por vezes, conseguia penetrar sub-repticiamente, e ir sentar-se sem que a professora a visse. Isso acontecia quando as alunas que a professora escolhera para a verificação dos trabalhos de casa, e que depois iam fazer a ronda pelas carteiras das colegas, estavam de pé, à volta da secretária. Aí, a Rosa conseguia safar-se no meio da confusão. Mas se esse momento já tinha passado, não escapava ao castigo. Tanto Maria de Lurdes como as colegas, já quase não ligavam, de tal maneira esta situação se tornara um hábito. Chegava desgrenhada, com a trança grossa que lhe corria ao longo das costas, esfiapada. Algumas vezes, apresentava-se sem sacola, o que assanhava ainda muito mais a fúria da professora. Os olhos grandes e pestanudos não deveriam ter visto água, uma vez que as remelas eram visíveis. Quando falava, a saliva soltava-se-lhe com frequência, e, por vezes, apresentava feridas nos cantos da boca. Quando acabava de falar, o lábio inferior ficava-lhe descaído, como se estivesse preparada para ter que responder prontamente a alguma questão. Rosa era um dos “bombos da festa”, quase diários, onde a professora aproveitava para manter a sua forma física sempre impecável. O que Lurdes não sabia na altura, era que a mãe da Rosa estava muito doente, acamada havia alguns anos. As irmãs saíam de madrugada, ainda o sol não luzia no buraco, para trabalhar na fábrica, e Rosa não tinha quem a chamasse de manhã, nem quem lhe penteasse a trança que aparecia num estado desleixado. A doença da mãe não interessava à professora, nem era motivo para que ela fosse mais tolerante para com a pobre Rosa.
Ora um dia a professora encomendou ao pai da Rosa, que era marceneiro, uma régua, objecto pedagógico tão do agrado da maioria dos professores daquela época. Não, não era uma régua em forma de palmatória... essa régua em forma de palmatória, com cinco olhos vigilantes e cúmplices dos castigos, só soubera da sua existência através dos relatos da mãe. As réguas agora usadas pela sua professora tinham cerca de seis centímetros de largura e trinta de comprimento. Uma manhã a régua chegou, comprida e encerada, de um belo tom de mel, pelas mãos de Rosa, que mais uma vez chegou atrasada. Não, não era uma régua em forma de palmatória...Essa régua em forma de palmatória, com cinco vigilantes e cúmplices dos castigos, só sabia da sua existência, através dos relatos da mãe.
Quem havia de estrear a régua? A candidata estava lá, à mão de semear, havia motivo. Não era preciso escolher mais para testar a eficácia de tão odioso instrumento de tortura. E assim, a Rosa estreou a régua, fabricada pelo seu pai, e que ela própria transportara até às mãos do carrasco.

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