"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Que lindas!...




Lurdes saltava de contente, à volta dos produtos que o pai expunha na montra da loja. Eram tão bonitos! E o pai tinha feito a montra de uma maneira tão interessante! No meio tinha colocado o tronco de uma árvore verdadeira! Os galhos da árvore estavam sem folhas, mas o pai tinha-lhes pendurado as luvas, os cachecóis e as boinas de uma maneira artística! Parecia que aqueles produtos fofinhos tinham nascido mesmo na árvore! Eram de lã, com pelinho, e tinham as cores da moda, dizia o pai de Lurdes: verde-claro, cor de cérise, azul índigo. Havia também umas mantas para usar como agasalho, mas essas não estavam na árvore. Estavam dobradas, em montinhos, de cada lado da montra. Mas eram também muito bonitas, da mesma lã fofinha… Eram xadrez. Todas tinham o preto como cor comum, mas umas conjugavam com o rosa, outras com azul, e outras ainda com o verde. Lurdes, do que gostava mesmo, era dos conjuntinhos de cachecol, luvas e boina. Quem lhe dera ter um desses conjuntos! O cérise então era tão lindo! …Mas ela sabia que isso era impossível, pois os conjuntos eram para gente crescida. Ainda tinha que crescer muito para que alguma daquelas peças lhe assentasse…mas sonhar não custava nada. A mãe acabou por ficar com uma das mantas, que era o que lhe fazia jeito, dizia ela.
Nesse dia à tarde veio à loja a criada da professora de Lurdes.
— Ó senhor Augusto, a minha senhora queria ver um daqueles conjuntos que o senhor tem na montra. Se o senhor mos deixava levar para a minha senhora escolher…
— Claro, menina Zezinha!
Lurdes ficou de atalaia, embora aparentemente se mantivesse desinteressada daquela transacção. Viu o pai colocar os conjuntos numa caixa, e desaparecerem, levados pela menina Zezinha. Andou por ali, pegou nas revistas, a gastar o tempo. Finalmente a menina Zezinha chegou, sorridente.
— A minha senhora gostou muito. Fica com o cachecol cor-de-rosa.
— “Cêrise! O meu pai diz que é cêrise” — pensou Lurdes.
— Faz favor de se pagar! — Zezinha estendeu uma nota.
— Diga à senhora Dona Armanda que eu tenho muito gosto em lhe oferecer o cachecol. É uma atenção da nossa casa para uma boa cliente.
— Ah! Então muito obrigada!
Lurdes ficou a ver a Zezinha a afastar-se. E não pôde deixar de sentir um sentimento de satisfação, quase de orgulho, por a professora ter escolhido a cor de que ela mais gostava. Mas, se fosse ela, escolhia o conjunto todo. Só um cachecol, não fazia metade da vista.
Ao outro dia, na escola, viu a professora, entrar pela sala adentro, com o cachecol colocado. Era lindo! Mas quem primeiro o vira, fora ela, a Lurdes.
Antes do dia de aulas terminar, Lurdes sentiu na pele o resultado da atitude cavalheiresca do pai. A sua professora não se deixava amenizar com prendas. Para que não pudesse sequer passar pela cabeça do seu pai que aquele cachecol poderia humanizá-la, ou levá-la a privilegiar de algum modo a sua educanda, Lurdes foi castigada com três reguadas, por se estar a “estragar”!
O “estrago” fora um erro ortográfico no ditado. Lurdes não dava erros. Naquele dia, desconcentrara-se, e o “do que” do texto que fora ditado, saiu-lhe um “duque”…
Lurdes deixara-se escorregar para um mundo encantado de príncipes, princesas, duques, condes… A bruxa trouxe-a de volta à realidade.
Naquele momento, Lurdes sentiu que ela e Rosa estavam de algum modo irmanadas…

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