"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A praia





A excitação dos preparativos acumulados durante dias a fio, presenteou-a com uma noite de vigília. Uma noite de lençóis amarrotados, pernas e braços atirados fora do colchão, murros no travesseiro, voltas e reviravoltas, suspiros de desespero.
O cansaço atirou-a finalmente para aquele estado de sonolência em que se esvai a noção do local onde nos encontramos. Um estado do qual se assoma mais cansado do que se partiu.
Acabou por sair da cama, meio trôpega, e, depois de atravessar a porta do quarto, viu acesas as luzes do corredor.
A mãe, com um ar cansado, andava de trás para diante, colocando roupa numa grande mala aberta em cima de duas cadeiras. No chão, outra mala, exactamente igual, abarrotava, aguardando, talvez, o jeito e a força do pai para a fechar.
A mãe olhou-a, e sussurrou:
— Vai dormir, ainda é cedo!
— E você, mãe? Já dormiu?
— Não te preocupes. Vá. Vai dormir. Ainda é muito cedo. O pai vai acordar-vos quando chegar a hora.
— Vou beber água.
— Mas depois tenta descansar. E não andes aí descalça!
Lurdes dirigiu os seus pés nus até à cozinha. Deu a volta à torneira da enorme talha de barro vermelho que estava assente num dos cantos da cozinha, e a água jorrou para uma caneca de esmalte, antes de a emborcar, límpida e fresca, pela goela abaixo.
Voltou para a cama. Fechou os olhos, mas o sono andava arredio. Do pensamento não lhe saíam todos os momentos dos preparativos, desde que souberam que iriam de férias, durante um mês, para a praia. Figueira da Foz. Ela nunca tinha visto o mar. Ao vivo, quer dizer. Já o conhecia dos calendários. Na véspera, estivera ela em casa da Aurora costureira, até bem tarde, enquanto ela lhe colocava a espiguilha no fato de banho vermelho que a mãe lhe mandara fazer. Era lindo, de popelina vermelha escura, todo cheio de franzidos. E, à volta dos ombros, um folho largo, descaído, orlado da espiguilha branca. Fora preciso recorrer à Aurora costureira, já que a D. Maria Fontes, que, durante quase um mês, trabalhara quase exclusivamente para a mãe, não conseguira dar conta deste seu tardio capricho. E D. Maria não teve mãos a medir. Calções e camisas para os seus irmãos, saias, vestidos, blusas e corsários para ela…Para a mãe, vestidos lindíssimos, lisos e estampados, um fato de saia e casaco cinzento, muito elegante, com as mangas do casaco a três quartos, e à frente, só um grande botão à volta do pescoço, de onde saía uma carreira de tecido desfiado. Duas blusas para o fato. Lurdes não se lembra de que o pai tenha feito qualquer preparativo especial…roupa, quer dizer…
A Chinha, nora de D. Maria Fontes, de férias em Portugal, vinda do Congo, assumira o papel de conselheira da mãe e era vê-las às duas a consultarem os figurinos, e a mãe, excitadíssima, a submeter-se às indicações de quem sabia. Sim, porque as fotografias não mentiam. A Chinha, sempre elegantíssima, num ambiente rodeado de palmeiras, e um belo carro descapotável. A Chinha a ser servida por vários criados negros. A Chinha, num safari, sabe-se lá onde…A Chinha…
E a mãe, a sua mãe, ignorada naquelas berças, a ter que alombar com todo o trabalho da casa, a cuidar dela e dos dois irmãos, e do pai, que se sentava à mesa a exigir ser servido e nunca sequer pusera a mesa, a sua mãe sem criados, sem vida que merecesse ser contada, a deixar-se encantar por aquela outra vida que parecia retirada de um conto de fadas.
E os filhos da Chinha, dois rapazes, o mais velho da sua idade, cada um dentro de seu carro, carros de brincar, como ela nunca imaginara que pudessem existir, iguaizinhos aos dos adultos, e que andavam mesmo, movidos a pedais…Os únicos carros que ela conhecia parecidos com aqueles, e no entanto tão diferentes, eram os que eram feitos com uma prancha de madeira dos caixotes de sabão, e rodas aproveitadas no lixo onde eram lançados os desperdícios da fábrica. Os garotos montavam em cima deles, que começavam a deslizar pela calçada, ganhavam balanço, e transformavam os rapazes em donos do mundo. Mas eram brincadeiras vedadas às raparigas.
E as fotografias que mostravam os dois irmãos muito direitos, começaram a aumentar, a aumentar, a aumentar, rodearam Lurdes e eles a chamarem-na para dentro dos carros, e ela entrava no carro do Nuno… Era um carro vermelho de madeira, que começou a andar aos tropeções, por uma enorme seara…Mas a seara transformou-se num enorme campo espelhado, de onde começavam a brotar girassóis vermelhos, que tinham olhos e bocas de peixe, e todos os girassóis, com as suas bocas de peixe, começavam a cantar, desafinadíssimas: “Bom barqueiro, bom barqueiro, deixa-me passar, tenho filhos pequeninos, não os posso deixar…” E o carro deslizava naquele chão espelhado, por entre os girassóis que não paravam de crescer, crescer, crescer e iam cantando a mesma cantilena…
— Vá, meninos! Está na hora!
A fotografia encolheu rapidamente. A voz do pai encheu o quarto. A voz do pai, sempre autoritária, tinha agora laivos de condescendência.
O irmão mais velho acordou logo, mas o outro continuou a dormir. O pai afastou o cobertor e deu-lhe uma leve palmada no rabo. Ele voltou-se, fitou o pai com aqueles olhos enormes e pestanudos, e, com uma voz meiga e infantilmente ciciada, perguntou:
— É agora, pai? Vamos ver o mar?
— Agora vamos tomar o café. O mar é só mais logo, depois da viagem.
**********

Acordaram quando o carro parou.
— Olhem, meninos, é o mar!
Lurdes sentiu um cheiro forte a entrar-lhe pelas narinas.
— A que cheira, pai?
— A maresia. Cheira a maresia. É o cheiro próprio do mar.
O céu parecia-lhe um reposteiro a conter aquela imensidão de água cintilante e doirada. Pássaros planavam ao longe. Sentiu uma emoção muito forte, inexplicável.
— Que lindas as andorinhas!
— São gaivotas, filha! Gaivotas!
— Podemos?
— Sim, vão lá!
Quando Lurdes pisou a areia fina e quente, ajoelhou-se, enterrou as mãos, riu-se das cócegas, rebolou, correu, saltou, gritou de felicidade. Depois correu para as ondas, seguida de perto pelos pais e irmãos. Assustou-se quando sentiu a água fria a rodear-lhe os pés.
— Que bom! Que lindo! Tanta água!
E havia lágrimas nos seus olhos.

6 comentários:

  1. A primeira vez que se vê o mar, dificilmente se esquece... :)) Bonito texto. Um beijinho e boa Páscoa

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  2. Ainda bem que gostou, Eva.
    Retribuo o beijo e os desejos de Boa Páscoa.

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  3. Uma felicidade, a praia! :)

    Boa Páscoa!

    Bjos

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  4. Eduardina,adorei... estás de parabéns...continua, os textos são uma delicia!

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  5. Obrigada, Mirita!É mais um incentivo! Um beijinho grande para ti.

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