"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Companheiras


Era uma vez uma felpuda ninhada de gatinhos cinzentos, tigrados, que apareceu, resguardada pelos arbustos, no quintal da tia Juliana...
De manhã cedo, antes de ir para o trabalho, a tia Juliana viera estender uma máquina de roupa que havia ficado a lavar durante a noite. E fora alertada por uns guinchos débeis, vindos por detrás do arbusto.
Cheia de precauções, não fosse o diabo tecê-las, a tia Juliana afastou os arbustos e...ficou encantada e comovida, ao reconhecer a gata vadia (à qual ela por vezes deitava uns restos de comida, ou umas sopas de leite), pacientemente esparramada, enquanto oito novelinhos, de focinho rosado, empoleirados uns em cima dos outros, lutavam para chegar às tetitas da gata exausta।
Perante aquele espectáculo, a tia Juliana não pôde conter uma exclamação espantada। E os olhinhos meigos que a gata lhe lançou, enterneceram o coração de Juliana, que não se conteve que não dissesse:
— Pobre bichana! Arranjaste-a bonita! Olha em que trabalhos te meteste, enquanto o malandro do pai dos teus filhos, anda por aí no laró!
A tia Juliana não pôde deixar de reconhecer naquela gata vadia, uma homónima da sua sorte। Já havia algum tempo que deixara de a ver, mas agora, ao surpreendê-la ali, naquela situação, sentiu-se irmanada com o pobre animal।
Também ela ficara sozinha, com os quatro filhos, quando o seu homem decidira dar às de “Vila Diogo”!E ela lá os criara, à custa de muito trabalho, comendo o pão que o diabo amassou. E não precisara dele para nada. Deus ouvira as suas preces, e, realmente pusera “a mão por baixo”aos seus meninos. Agora, cada um seguira o seu destino: o mais velho trabalhava na “Carris”, em Lisboa. O mais novo era professor primário no Alentejo, e as duas raparigas, ambas solteiras por opção, tinham uma sociedade de”catering,”ou lá o que é, em Vila Nova de Gaia. Estavam todos bem, graças a Deus। O único senão é que ela estava sozinha, depois de ter tido uma vida cheia e sem tréguas, enquanto os criara. É certo que a visitavam com alguma regularidade, sobretudo as raparigas. Mas sentia-se só. Por isso mesmo, nunca deixara de trabalhar, e o seu trabalho como empregada doméstica, trazia alguma animação e distracção aos seus dias. As duas casas onde ela trabalhava, tinham crianças, como ela exigia. Quando cresciam, e iam para a Universidade, ela despedia-se, e ia procurar outras casas, onde houvesse outras crianças a precisarem do seu carinho de avó, já que os seus únicos netos, dois rapazes do filho mais velho, estavam tão longe. Foi buscar à loja o cesto das cebolas, que despejou no chão de terra batida, e, com mil desvelos, forrou o cesto com um cobertor velho। Em seguida dirigiu-se ao quintal e começou a pegar nos gatinhos. Ao princípio a gata levantou a cabeça, vigiando as crias. Olhou para a tia Juliana, e, nesse olhar aquela mulher pôde ler uma súplica muda. As palavras que lhe saíram da boca foram ditadas pelo coração, de igual para igual:
—Vá, sossega!
A gata voltou a poisar a cabeça। Parecia muito fraca। Finalmente a tia Juliana pegou –lhe, e ela não ofereceu resistência। Uns gemidos fracos e cansados foram a sua única reacção। A anciã ajustou os gatinhos, de modo a que pudessem ir mamando।
Uma suspeita foi nascendo no espírito da Tia Juliana, que se dirigiu à gata:
— Ó mulher, tu não vais morrer, pois não? Olha que tens estes filhos todos para criar! E uma mãe nunca desiste, ouviste?
Foi à cozinha, esmigalhou o pão da véspera, ao qual acrescentou um pouco de leite। Aproximou-se da gata, que não mostrou o mínimo interesse pela oferta।
— Ai a nossa vida! Isto assim não pode ser! Tens que te alimentar! Como queres ter leite para esta filharada, não me dirás? Ah! Já sei! Estás enjoada, não é? Espera aí!
Voltou à cozinha e trouxe uma lata de sardinhas, que abriu mesmo à frente da gata.
—Olha-me só este cheirinho! Ora prova! Não queres?! Queres ver como é bom?
E, pegando num bocadinho, levou-o à boca, esperando, com o seu exemplo, convencer a gata a comer:
— Tão bom! Ora prova!
Perante a indiferença da gata, a tia Juliana levantou-se, e avisou:
— Bem, tenho que ir trabalhar। Vou-te deixar, mas volto! Ficam-te aqui as sopas e as sardinhas e vou-te pôr também uma taça de água। Quando voltar, quero ver que comeste alguma coisa। Até logo!
Durante a manhã não lhe saiu da cabeça a pobre bichana। Foi com algum esforço que fez o seu trabalho, enquanto aguardava que os meninos chegassem para almoçar। Então contou-lhes, com os olhos cheios de alegria, dos oito gatinhos que lhe tinham aparecido no quintal। Mas, ao falar-lhes da mãe, os seus olhos tingiram-se de negro, pelo receio que lhe ensopara a alma। O Bernardo lembrou –se logo:
__ O pai da Rita da minha turma é veterinário। Eu logo já falo com ela। Nós estamos a fazer um trabalho em “Área de Projecto” sobre os animais abandonados। Até podemos arranjar donos para os gatinhos!
— Não, menino! Donos, não! Eles têm dono, aliás, dona!
Naquele momento Juliana assumira aquilo que ainda nem sequer pela cabeça lhe passara: ficar ela a cuidar dos gatinhos। Mais tarde, acabaria por concluir não possuir condições para desempenhar aquela tarefa e, efectivamente, os gatos foram partindo, para casas onde seriam bem cuidados, mas sempre acompanhados por duas lágrimas da tia Juliana, e pela promessa de que os nomes com que ela os baptizara, haveriam de prevalecer। Só guardaria para si a Zélia, a mãe।
— Se o pai da menina Rita pudesse ver a gata!
E a excitação, doseada pela preocupação da tia Juliana, fora o rastilho que em breve incendiaria a turma do 6º ano da escola frequentada pelo Bernardo। Aquela “Área de Projecto” rapidamente tomou outros contornos। A Rita implicou o pai no tratamento da Zélia (então ainda sem nome), que necessitou de uma intervenção cirúrgica, sem a qual teria morrido।
Sem conhecimentos médicos, mas com grande sensibilidade, a tia Juliana apercebeu-se do estado da gatinha।
E é vê-las no quintal, logo pela manhã... A tia Juliana a estender a roupa, e a gata a seguir todos os passos da sua companheira, sim, porque a relação entre elas é de companheirismo, e não de dona / servo।
Enquanto estende a roupa, a tia Juliana vai falando com a Zélia, que lhe responde com miados, ronrons, gemidos, silêncios, arrebitamento de orelhas, acenos de cabeça, saltos mais ou menos calmos...E a tia Juliana aprendeu a reconhecer, nestes gestos de Zélia, o assentimento ou a discordância ao seu discurso, num diálogo perfeitamente animado e interactivo।
Quando chega a hora de dormir, Zélia dirige-se para o quarto comum, deitando-se na sua almofada, enquanto aguarda que Juliana faça a sua “toilette” e encoste, também ela, a cabeça na almofada que lhe pertence।
Nunca mais a tia Juliana sentiu o peso da solidão a marcar-lhe as horas, os dias, os meses... Encontrou uma companhia com a qual pode conversar, que a escuta e compreende melhor que ninguém। Disso ela não tem a menor dúvida।

4 comentários:

  1. Muito bonito. Muito bem escrito. Foi o a melhor participação das que já li até agora. Parabéns.

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  2. Muito obrigada. Fico babada,sobretudo vindo de quem vem, pois admiro aquilo que escreve.

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  3. Muito emocionante!Amei cada linha,cada palavra,cada trechinho.Aplausos.bjs

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  4. Ainda bem que gostou, soninha! Obrigada.

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