"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Regresso



Nasci no sítio errado. Num vale perdido no meio da serra. Não obstante todas as suas belezas naturais, senti sempre que o meu lugar não era ali. Que era fruto de um tremendo equívoco. Em miúda, e durante muito tempo, pensei que era ali o fim do mundo, o lugar onde a terra acaba. E que, para lá dos montes, era o nada. Quem entrasse na aldeia, só podia sair pelo mesmo caminho, voltando para trás, recuar, retroceder. E quem retrocede, quem volta atrás, desfaz o caminho percorrido. Como quem se arrepende de ter escolhido aquele caminho. Ou como quem dá conta que se perdeu. E tem que voltar atrás, refazer o caminho. É isso. Como quem se perde. Então, eu, ao nascer, perdi-me, porque abri os olhos para a vida naqueles montes serranos, naquela aldeia sem futuro, como sem futuro prometiam ser as vidas ali concebidas e que ali abriam os olhos para uma vida sem promessas. Cresci com uma sensação claustrofóbica, que só muito mais tarde viria a identificar como tal. Olhava à minha volta, e só via montes a cercarem-me, montes ameaçadores que se fechavam sobre mim e me gritavam um destino confinado e sem asas, e me roubavam a respiração, os sonhos, as ilusões.
Mas havia, mesmo assim, alguma esperança. A água que escorria pela serra, escavando sulcos nas encostas dos montes, e que de dia e de noite rumorejava pelos regos da aldeia, era a voz imperiosa e imparável que dentro de mim se erguia, e me prometia esperança. E eu esperava. Quando a noite chegava, essa voz submergia-me, e brotava em todos os poros do meu corpo. E eu pressentia, sem me ter sido ensinado, que essa água corria para algum lado, encontrava o seu caminho, desaparecia da minha vista, mas encontrava o seu refúgio, não voltava para trás.
Os meus pesadelos eram povoados de figuras aterradoras que me perseguiam e das quais eu fugia, fugia, fugia…Mas eu sabia como as ludibriar. Entrava no rego, unia--me a essa água que corria sem entraves, dissolvia-me nela, lançada numa corrida vertiginosa em abrupto declive, os ouvidos ensurdecidos com o fragor brumoso da cascata e eu acordava, enfim, liberta das garras da ave de rapina que, do alto do seu império, me devolvia à terra. E sentia o embate no meu leito, o coração num sobressalto, batendo descompassadamente. E, na noite, os meus olhos abriam-se, e voltavam a fechar-se, com a certeza de que haveria algures, no mais remoto escaninho, esperança. E readormecia reconfortada.
Aos domingos os meus olhos e sentidos ficavam prisioneiros de encantamento na janela mágica que se abria no Café em frente da minha casa, que me prometia outros mundos, outros céus, outras paisagens, outras pessoas, outras vidas. E mais uma vez o pressentimento de que talvez houvesse mundo para lá daqueles montes intransponíveis debruçados sobre mim, vigilantes, a transformarem os meus sonhos em pesadelos. Sim, havia outros mundos. Havia esperança. Esperança.
O mundo que os livros me prometiam, era mentira.. Eu sabia disso, mas mergulhava neles e devorava aquelas páginas que me levavam para além dos montes, porque cedo aprendera que só através deles era possível sair dali. E viajava dentro deles, emboscava-me naquelas páginas douradas, que me permitiriam sobreviver sem cicatrizes na alma.
Quando, finalmente, fui chamada a voltar para trás, a recuar, a retroceder, para ir estudar para a cidade, compreendi que se pode recuar e estar a caminhar em frente, para um futuro com esperança. Soube então que estava salva.
Mas o maior encantamento foi quando descobri o mar, quando descobri espaços amplos sem montes, quando descobri que as grilhetas que eu receava que me amarrassem irremediavelmente àqueles montes, àquelas enormes fragas suspensas nas encostas, àqueles pinheiros sussurrantes, poderiam ser quebradas como cordas esfiapadas, pela vontade indómita do meu querer. E foi aqui, em frente ao mar, que eu senti a união, o regresso ao ventre materno, a paz e tranquilidade que procurei, a razão do meu ser. Só aqui encontro a fonte inesgotável que sacia a minha sede, só aqui a minha alma ganha asas, voa e se liberta, volteia junto às gaivotas que cruzam os céus hoje sem nuvens. Aqui solto os meus medos, que transporto comigo como cães de fila sempre à espreita de avançarem e me congelarem os meus íntimos anseios. Apaziguo-os e eles dão-me tréguas, enquanto caminho pela marginal ou voo confiante pelo areal, ao encontro das águas do mar. Aqui sinto que é possível reconstruir-me como se voltasse ao princípio, ao primeiro momento de vida, quando abri os olhos pela primeira vez naquele vale. Abro-os aqui, em frente ao mar, e sinto que nada me detém. Já não há montes a subjugarem-me, nesta vida renovada, em que a parte de mim que andou perdida, se une à outra que sempre aqui esteve, à espera, à espera que eu chegasse e a reconhecesse.
Voltei a casa.

2 comentários:

  1. Vim retribuir a visita e gostei bastante do teu espaçinho :) Feliz de quem encontra o seu lugar no mundo. Por vezes, aqui ou ali, são um mero pormenor no lugar que sabemos ser nosso cá dentro. por isso é que nenhum pedaço de terra pertençe a ninguém... pois se somos nós a pertencer aos lugares! :) Eu pertenço à minha cidade que continua vila em mim e pertenço à cidade do mar... onde deixei o coração :)Voltarei! beijinho e boa Páscoa

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  2. Eva:
    Obrigada pelo seu comentário.E são sábias as suas palavras sobre a nossa pertença aos lugares.Mas eu não sinto o apelo telúrico pelo lugar onde nasci, até com alguma mágoa minha, confesso.É o mar que me chama.

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