"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Loucura


As mãos magras e compridas como garras, aconchegavam-lhe debaixo do pescoço o felpudo xaile de lã, que lhe descobria a fronte, e deixava escapar repas cinzentas, frágeis e sem brilho. O olhar transviado e breve varria tudo à sua volta. Daí o desejo de me tornar pequena, invisível aos seus olhos. E era. Mas eu não sabia. E o desconforto e o terror que esta visão me suscitava, cresciam dentro de mim, juntamente com a esperança de a não encontrar sempre que era obrigada a passar naquele bairro da minha aldeia. Seguiam-lhe os passos os cães que se iam juntando, e, calmos e silenciosos, a acompanhavam neste vaivém. Nenhum gesto nela denunciava ter dado pela presença deles, que não arredavam pé. Se alguém, desagradado pelo ajuntamento dos animais os enxotava, eles desapareciam momentaneamente, para voltarem a juntar-se pouco depois.
A mulher era alta (pelo menos assim se apresentava ao meu olhar infantil), e magra, quase cadavérica. A boca, onde escasseavam os dentes, lembrava-me uma caverna. A lengalenga que a acompanhava nas suas deambulações, era invariável, repetitiva e dolente.
— P´ra onde foi ela? P’ra onde foi ela? P´ra onde foi ela? P’ra onde foi ela?
Aquela pobre mulher metia-me medo. Não era só medo. Era uma mescla desse sentimento paralisante, com doses profundas de uma dolorosa e angustiante compaixão, sempre que a via andar de um lado para o outro, com um ar desamparado, repetindo continuamente as mesmas palavras, calcorreando a rua a todo o comprimento.
“Ela” era a filha, ocupada em serviços de limpeza, na casa de alguma cliente. Costumava ser contratada para fazer os trabalhos mais pesados. Esfregar os balcões e os chãos de granito, roçar os soalhos de tábuas de madeira corridas, retirar os restos de cera antiga, colocar nova, puxar o lustro, lavar as vidraças e janelas, arear os alumínios, ou as pratas e estanhos em casa dos ricos.
Mas a mãe, não tendo a filha debaixo do seu olhar demente, ficava num tal estado de excitação, que só se aplacava quando a rapariga, depois do serviço terminado, se lhe juntava. Seguia então a filha, como um autómato, descansando da busca e da cantilena. E, só nessa altura, quando a filha surgia no umbral da porta da cliente onde trabalhara naquele dia, os animais dispersavam também.
À mulher, nunca lhe ouvi outras palavras que não fossem as da lengalenga que ela recitava constantemente. Nem sei se ela mantinha com a filha o diálogo imposto pelas necessidades do quotidiano.

Após o distanciamento da infância indispensável à confissão dos medos que então nos tolheram, soube que a pobre mulher era inofensiva. O seu estado de demência fora provocado pelas mortes do marido e do filho, aquele na batalha de La Lys, este, ainda um rapazinho, atingido pelos estilhaços da explosão da mina da Panasqueira onde trabalhava.
Apesar disso, aquela figura continua a povoar as minhas reminiscências…






5 comentários:

  1. A dor por vezes obriga as pessoas a refugiarem-se dentro de si mesmas. E talvez ela tivesse medo que algo lhe levasse a filha também! gostei muito, bastante emocionante e descritivo! bjs

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  2. É verdade! A loucura, às vezes, é mesmo o único refúgio para uma dor insuportável.Acredito que esta pobre mulher pensava que,debaixo do seu olhar, a filha estaria em segurança.
    Obrigada pelo seu comentário.Beijinho

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  3. Pois é, quanta dor para assim se perderem as coordenadas da vida. Vida triste, confinada a ela e à filha que obsessivamente receia perder.
    Gostei do texto, bjs

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  4. Muito obrigada, Isa.Benvinda a este cantinho.

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  5. A perda daqueles que se amam pode mesmo levar à loucura... Bonito texto.
    Beijinhos

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