"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sábado, 27 de novembro de 2010

Cumplicidades


O irmão mais velho era o seu companheiro das brincadeiras. O outro, mais novo, ainda não largara as saias da mãe, o que lhes dava alguma liberdade, para cultivarem cumplicidades que às vezes redundavam em asneiras fortemente castigadas pelo pai, que era bastante severo. A mãe, embora soubesse que ali na aldeia toda a gente se conhecia, não gostava que os garotos andassem na rua, sem que ela soubesse exactamente onde estavam. Às vezes pediam para irem ter com o pai à loja, e, como era pertinho, lá os deixava ir, sempre bem arranjadinhos, como fazia questão. Outras vezes, era ela própria que os mandava irem chamar o pai para almoçar, tarefa de que eles se saíam bem, estimulando-lhes a autonomia e a auto-estima. Gostava de os responsabilizar dando-lhes pequenas tarefas que sabia que eles conseguiam realizar, com um objectivo bem definido, mas não de os deixar ir brincar para a rua.
Um dia saíram os dois, dizendo que iam ter com o pai. A mãe, às voltas com o almoço e com os cuidados ao irmão mais novo, descurou um pouco as recomendações habituais. Como não levavam nenhum recado específico para o pai, quando chegaram perto da loja, António continuou o caminho, seguindo para a parte mais alta da aldeia.
— Onde vamos? — perguntou Lurdes.
— A casa dos avós do alto. Queres?
— Quero!
António era o irmão mais velho de Lurdes. O pai estava sempre a dizer-lhe que ele, como mais velho, tinha que tomar conta da irmã. E era isso que ele fazia, sugerindo as brincadeiras, e decidindo, sem dar hipótese à irmã de as recusar ou sugerir outras, o que, aliás, era inútil, pois Lurdes gostava muito do irmão e o que ele fizesse, estava bem feito.
Bateram à porta dos avós, mas, claro que, àquela hora, eles não estavam. O avô trabalhava na fábrica de lanifícios, saía de manhã, e, quando estava bom tempo, ia até à propriedade que possuía na encosta da serra, onde tinha algum gado e courelas.. A avó, na altura das sementeiras ou colheitas, passava lá também o dia e regressavam ambos ao sol- posto. Por vezes até por lá dormiam. Mas os garotos eram ainda muito pequenos para se aperceberem dos mecanismos que comandam a vida dos adultos. Ficaram por momentos a olhar um para o outro. Tinham que aproveitar aquela liberdade que lhes caía do céu.
— Vamos brincar!
— Vamos!
Ajoelharam-se no chão da Carvalha, e, com as mãos, começaram a cavar buracos no chão. A terra ali era fofa e mole. Por isso, a empresa que se propuseram levar a cabo não foi de molde a desmotivá-los dos seus propósitos. Não tardou muito e veio juntar-se-lhes um menino que eles conheciam. Vivia em Lisboa, mas estava de férias com os pais, que eram amigos dos avós de Lurdes e António.
— Olá! Que estão a fazer?
— Uma garagem para a camioneta! — respondeu o António
— Ah! E onde está a camioneta? — perguntou o Luizinho
— Está em casa.
— Eu vou buscar a minha, está bem?
— Está!
Os dois irmãos continuaram as suas escavações, a Lurdes mais espectadora do que operária.
Passado um bom bocado chegou o Luizinho.
— Demoraste! — observou o António.
— A minha mãe disse que só podia vir depois de comer.
— Ah!
Lurdes pensou que eles ainda não tinham comido, mas não tinha fome. Aliás, Lurdes nunca tinha fome. Comer, para ela era um verdadeiro suplício. Por isso era tão magrinha, e tinha um ar tão amarelo. Mas era saudável, e isso é que era importante. A mãe já a tinha levado ao médico por ela comer tão mal, mas o médico dissera que aquilo havia de passar…
Luís chegou com um camião de madeira, como eles nunca tinham visto!... era enorme, vermelho e azul, e a parte de trás virava-se, para deitar a terra fora. Ficaram ali, deliciados, esquecidos do mundo…Fizeram estradas para a camioneta passar, e montes de terra para ela subir e descer.
Mas a brincadeira acabou interrompida de uma maneira brusca…De repente cada um dos dois irmãos sentiu-se fortemente agarrado por um braço. À frente deles, o pai espumava de raiva.
— Onde se meteram, seus vadios? Sabem que horas são?
Nos olhos dos dois irmãos lia-se o terror. Não deram resposta, nem era para dar. Mas o ar do pai não deixava margem para dúvidas sobre a natureza do castigo que ele estava a engendrar. Sacudindo-os rispidamente, com modos bruscos e agressivos, agarrou-lhes os pulsos, o que fez com que o António soltasse um gemido de dor. A resposta foi duas valentes palmadas no rabo que o puseram a chorar. Em seguida, tirou uma corda de algodão do bolso e prendeu os dois irmãos um ao outro, como se de dois criminosos se tratasse. A outra ponta da corda enrolou-a à volta da sua mão direita.
— Vamos lá! Se é preciso prender-vos para saber por onde andam, é isso que vão ter.
Lurdes tinha escapado às palmadas, mas não à humilhação. Sem uma palavra, desceram a rua, e foram conduzidos a casa. A mãe estava aflita, e zangada.
— Pensei que vos tinha acontecido alguma coisa! É tardíssimo! Saíram daqui há mais de três horas! Não tendes fome?
Os garotos não responderam. Receavam que, se falassem, enfurecessem ainda mais o pai.
— Dá-lhes de comer que eu já os venho buscar! — ordena o pai
— Mas …e as cordas? Para que são as cordas?
— Deixa estar as cordas, que eles vão aprender uma lição que nunca mais na vida vão esquecer!
O pai saiu. Então os miúdos lá se abriram com a mãe.
— Mas nem mesmo quando o Luizinho disse que tinha estado a comer se lembraram que era tarde?
Que não, nem derem conta do tempo a passar, e o camião do Luizinho era tão lindo!
O António, só naquela altura se apercebeu de que estava esfomeado. A Lurdes nem tanto. Mas a sopa de couve ripada soube-lhe bem, contrariamente ao habitual.
O pai não tardou a regressar. Agarrou nas cordas e ordenou-lhes que o seguissem. Quando a mãe o questionou sobre as suas intenções, respondeu-lhe que ia fazer deles uns adultos. É possível que nesse momento ele lhes tenha roubado alguma dose de inocência. Os garotos saíram de casa, preocupados em acompanhar os passos do pai, para que ninguém notasse que iam presos. Chegados à loja, a primeira reacção de ambos foi dirigirem-se para a parte interior do balcão, para que os clientes que entrassem os não pudessem ver. Mas não era essa a intenção do pai. Sempre que algum cliente entrava na loja, obrigava os garotos a mostrarem-se, e exibia-os, como se tratasse de animais amestrados de um circo. A todos repetia a história, e vangloriava-se da lição exemplar que estava a dar aos filhos. Houve quem o felicitasse, quem o censurasse.
Quem pudesse ler no olhar de Maria de Lurdes o que lhe ia na alma, poderia sentir a tristeza e a vergonha que a consumiam, não por ela, mas por causa da piedade que ela lia nos olhos das outras pessoa…Como fora o pai capaz de os sujeitar e sujeitar-se àquela humilhação?

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