"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Os sótãos da minha vida





Sempre tive uma predilecção muito especial por sótãos ou águas-furtadas desde pequena.
Atrai-me a descoberta do inesperado, das velharias guardadas, como se na decisão de guardar essas velharias se pretendesse guardar o tempo que a sua contemplação evoca, mantendo a secreta esperança de que algum dia elas possam ser insufladas de vida, e descoberta para elas nova utilidade.
É essa esperança que as mantém a salvo de algum dia poderem ser atiradas para o lixo.
O sótão da casa da minha avó paterna era diferente do da minha outra avó. Era um sótão cujo soalho era de tábua corrida, luminoso, onde se podia ficar em pé e cheirava a limpo e a maçãs.
Da única vez em que lá subi, fiquei deslumbrada...Era um sítio óptimo para se estar, para brincar, para ler...Mas eu só ia a casa da minha avó de visita, aos domingos à tarde, no domingo de Páscoa, que era obrigatório, sob pena de termos de enfrentar a sua fúria. Nos outros dias, vi-a com frequência, mas na minha casa, onde ela ia dar dois dedos de conversa, os quais culminavam invariavelmente com uma merenda em que a bebida de eleição era o chá.
Nunca tive com ela a mesma confiança que tinha com a minha avó materna. Era uma relação quase cerimoniosa. Por isso, quando ela nos oferecia alguma gulodice, devíamos sempre recusar educadamente.
— Não, obrigada!
E só depois de ela insistir, é que nos atrevíamos a estender a mão para o que ela nos apresentava.
Daí que nunca me tivesse sido permitido explorar devidamente aquele sótão, de onde se vislumbrava, através de um pequeno postigo rasgado no telhado, um belo pedaço de céu azul.
O sótão da casa da minha avó materna, ou desvão, como ela lhe chamava, era um lugar sombrio, cheio de teias de aranha, pó e inutilidades...E a minha avó ficava possessa, quando descobria que nós andávamos por lá...
Na altura não percebia esta rezinguice dela...Só mais tarde é que entendi que o receio dela era que enfiássemos algum pé pelo sobrado velho e carcomido, e viéssemos a estatelar- nos, sem vida, no chão de granito da cozinha...
É que a casa onde vivíamos era de facto muito velha...O meu avô comprara-a com o dinheiro que amealhara no Brasil, e tinha intenções de a recuperar, colocando-lhe uma placa e um terraço...Mas a morte arrebatara-o, sem que tivesse levado a cabo esses seus intentos, e também sem nunca ter feito as pazes com a família que aqui ficara em Portugal. Quem sabe se, algum dia, algum dos seus descendentes chama a si a tarefa de procurar nessas terras longínquas brasileiras, os seus restos mortais?
Outro sótão que fez as minhas delícias em pequena, foi o da casa da praça, para onde nos mudámos quando deixámos a casa da minha avó materna, onde os meus pais viveram desde que casaram, até ao momento em que decidiram, finalmente, cortar o cordão umbilical e irem viver com a família para uma casa com condições mais adequadas à de alguém que aspira subir na escala social. Era um sótão enorme, amplo, com as telhas à mostra, com enormes caibros de castanho, que suportavam a estrutura de toda a casa. A luz natural entrava por telhas de vidro. Tinha uma parte central com um pé direito que permitia que se caminhasse nele à vontade, com o soalho em tábua corrida, e onde havia uma pequena divisão com o tecto forrado a madeira, que servia de quarto de criada. Aí dormiu a Laurinda, cachopa que ajudava a minha mãe nas tarefas domésticas, e era também, amiúde, nossa companheira (minha e do meu irmão) nas brincadeiras, cujo palco privilegiado era aquele sótão que tão bem se prestava ao desenvolvimento das nossas imaginosas aventuras. De facto, os espaços esconsos do sótão eram, nalguns recantos, tão estreitos e apertados, que o acesso a eles só a nós, crianças, era possível, e muitas vezes a poder de rastejarmos por entre os pequenos intervalos. Se levantávamos a cabeça, arriscávamo-nos a juntar mais uns galos à colecção...
Às vezes vinha juntar-se às nossas brincadeiras o Zé Pereira, colega e companheiro de carteira do meu irmão. Era um rapazinho educado, o filho mais novo do sapateiro, órfão de mãe. Um dia fui encontrá-los enfiados num dos tais recantos a que só nós, pelo tamanho dos nossos corpos, tínhamos acesso. Rastejei até junto deles. Estavam tão absortos, que nem deram pela minha chegada. Quando me viram, mostraram-se desagradados, o que aguçou o meu apetite. Queria ver o que eles estavam a ver, e que lhes causava aqueles risinhos. Estavam debruçados, lado a lado, espreitando para baixo. Pude então constatar tratar-se de uma abertura no tecto do sótão do andar de baixo, que se destinava a deixar passar a luz que penetrava pelas telhas de vidro do nosso sótão. Era o quarto da criada da senhora que morava por baixo de nós, e que era nora do nosso senhorio. Reconheci aquele espaço por já lá ter estado, pois muitas vezes eu descia até ao andar de baixo, atraída por aquela senhora citadina e bem cheirosa, que era em tudo diferente das mulheres que eu conhecia: usava cabelos compridos com uma fita larga na cabeça, “leggings”, camisolões coloridos de malha grossa que ela própria tricotava, e que lhe chegavam quase aos joelhos, “maquillage”, e falava à lisboeta. Aí eu era sempre bem recebida, tanto pela senhora, que não tinha filhos e me achava graça, como pela sua criada.
Naquele momento, em baixo não estava ninguém, mas não sei se aqueles dois malandrecos não teriam assistido a alguma cena que não deviam, dado os risinhos palermas e os olhares cúmplices que eles trocavam.
Também o tecto nos oferecia refúgios que eram inexpugnáveis à estatura dos adultos. Os espaços que havia entre as traves mestras de enormes dimensões e o telhado, permitiam que aí nos esticássemos ao comprido, sem sermos vistos por quem olhasse de baixo para o tecto. Éramos como macacos, subindo pelos pilares e pendurando-nos das traves de cabeça para baixo. Numa das traves havia o meu pai ajeitado uma corda amarrada a um pneu velho, que nos servia de baloiço. Outras vezes estendíamo-nos no chão, e, através das fisgas do soalho, víamos a nossa mãe que, na cozinha, se ocupava das tarefas domésticas. Chamávamo-la, e ela, com uma entoação de voz surpresa, fingia não saber quem lhe falava e de onde lhe falávamos, o que nos deixava realmente convencidos de que tínhamos conseguido pregar-lhe uma partida. Esse foi para mim um tempo fantástico! Era a altura em que eu era a companheira de brincadeiras do meu irmão mais velho. Eu esperava ansiosa que ele chegasse da escola para nos entregarmos aos nossos folguedos. Nos dias chuvosos, ficávamos ali, a ouvir a chuva martelar no telhado, a vê-la escorrer pelas telhas de vidro, e a brincar às escondidas...Eu era perfeitamente feliz, pois a ansiedade provocada pela escola, período que veio a revelar-se tão traumatizante para mim, ainda não tinha vindo perturbar a despreocupação da infância. Nessa altura o meu irmão mais novo era ainda muito pequeno para participar neste tipo de brincadeiras. Sofria, desde pequeno, de enxaquecas que o deixavam muito prostrado, e, por isso, quase não saía debaixo das saias da minha mãe. Era muito conversador, e entretinha-se muito com ela. Quando o meu irmão mais velho saiu de casa para ir estudar, ficando interno num colégio e vindo a casa apenas nas férias, sofri com esta separação. Foi então que me voltei para o meu irmão mais novo, por quem me sentia responsável, levando a peito o meu papel de irmã mais velha. Nesta altura o meu instinto maternal desenvolveu-se fortemente, e eu imaginava então que ele era o meu filhinho...
Outros sótãos entraram na minha vida. Quando nos mudámos para a cidade para podermos estudar, a casa então alugada pelos meus pais era um casarão que dispunha de um sótão que era um outro andar. Quando entrámos nessa casa para a explorarmos pela primeira vez, corri para as escadas ao fundo do corredor, e, depois de as galgar, encantei-me com o sótão. Escolhi logo um dos quartos para mim. Eram quatro quartos, naturalmente esconsos, dois de cada lado do corredor, forrados com ripas de madeira pintadas de azul-claro, e paredes brancas. Cada um possuía uma janela de alçapão, para a iluminação e arejamento. O meu irmão mais velho também escolheu um dos quartos para ele, mas cedo voltou para baixo, partilhando o espaço com o meu irmão mais novo. Sentia-se mais tranquilo com companhia, pois não lidava bem com o escuro e, no andar de baixo, além da tranquilidade que a proximidade do mano lhe proporcionava, podia ainda usufruir da localização próxima do quarto dos meus pais. Ao fundo do corredor do sótão, havia uma porta feita à nossa medida (era o que gostávamos de pensar, uma vez que nos chegava à altura dos ombros), encimada por uma enorme clarabóia. Essa portinhola dava acesso aos arrumos, com as telhas à mostra, e onde só podíamos movimentar- nos de cócoras. Em cada quarto havia também uma porta de tamanho reduzido, que comunicava com os mesmos arrumos. Penso que foi a existência destas portas que desencorajou o meu irmão de manter o seu quarto no sótão.
Sentados por baixo dessa clarabóia, num dia mágico, embalados pela música que as gotas de chuva produziam ao embater nos vidros, com a porta de acesso aos arrumos aberta e aproveitando uma pausa nas arrumações decorrentes das mudanças, tivemos, eu e o meu irmão, uma conversa cheia de cumplicidades, em que confessámos um ao outro a perturbação de um corpo em mudança, que a natureza conduzia, a passo rápido, para a adolescência. Não me lembro de um momento tão íntimo com ele como aquele. Provavelmente, essa conversa caiu na escuridão do seu esquecimento. Mas eu lembro-me, tantos anos passados, e sinto uma ternura enorme por esse momento de partilha.
Na casa onde eu vivo com os meus filhos e o meu marido, e que é a nossa casa, no verdadeiro sentido do termo, há, como não podia deixar de ser, um sótão.
É um sótão simpaticíssimo, com muita luz, todo forrado a madeira. Duas pequenas portas laterais conduzem à “desarrumação”, nome adequado aos trastes que por lá se vão acumulando, preservando-os da nossa vista. Três paredes deste espaço amplo, que nós elegemos para local de trabalho, são inteiramente forradas por grossas prateleiras de madeira, que abrigam aqueles que são os meus companheiros de sempre: os meus livros. Dos mais antigos aos mais recentes, amigos que eu não dispenso, que me têm acompanhado desde sempre, e sem os quais a minha vida seria, sem sombra de dúvida, muito solitária e insípida.

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