"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

domingo, 13 de abril de 2014

Mais leve

Já só me faltava receber a encarregada de educação da Raquel, uma adolescente problemática, amiga de chamar a atenção, quezilenta e arrogante. Desaproveitava as grandes capacidades que possuía, para ser a líder dos alunos malcomportados. Inteligentíssima, era perita na arte da argumentação, entrando em duelos verbais com os professores dos quais frequentemente saía vencedora, o que reforçava a sua posição entre os seus colegas. Apesar disso, o seu aproveitamento escolar nunca estivera em risco.
Quando levantei o olhar da papelada, não vi a mãe da Raquel, mas um homem.
Apressou-se a estender-me a mão, apresentou-se como sendo o pai da Raquel, explicando que a mãe, a encarregada de educação, tinha ido de visita aos pais nos Açores, levando consigo a filha mais nova, enquanto ele ficara com a mais velha.
Arrepiei-me quando o vi. Se ainda tivesse dúvidas, elas desapareceram à medida que ele ia falando. Todavia, não detetei qualquer indício de me ter reconhecido. Falava do assunto da Raquel com a preocupação natural de quem tem uma filha adolescente problemática a tentar concentrar sobre si todas as atenções. Ouvira a leitura das participações dos professores, que eu lhe lera com voz trémula, e prometeu que iria conversar com ela. Recebeu fleumaticamente, pareceu-me, as notas da filha, assinou todas as fichas e demais papelada que eu lhe apresentei, dobrou ao meio a folha da avaliação com um vinco, e guardou-a no bolso interior do casaco. Era mais velho do que eu oito anos. Porém, estava bastante envelhecido, e a diferença de idades parecia muito maior. Continuava magro, com sempre fora, mas parecia arrastar consigo todo o peso do mundo. A mesma voz rouca e sensual que tanto me perturbara, deixava-me agora indiferente.
Em tempos as nossas vidas tocaram-se profundamente, numa roda de violência, paixão, perdão, gritos, choros, equimoses no corpo e na alma.
Eu fora obrigada a fugir, deixando para trás o meu emprego, e acabara por aceitar um lugar de professora no Algarve. Soube que me procurara junto dos meus pais, que o avisaram que me deixasse em paz se não queria estragar a vida dele e a deles.
A última vez que me chegaram notícias, através da amiga comum que nos apresentara, já eu estava casada com um amigo de infância, os meus três filhos já tinham nascido e eu tinha regressado ao Norte. E era feliz.
Ele preparava-se para casar com a mãe das duas filhas, numa altura em que a maior parte dos amigos da sua geração estavam a começar a ser avós. Dissera à nossa amiga “ que já era tempo de assentar.” Só depois do nascimento da filha mais nova lhe parecera oportuno assentar. Recordo o sentimento de piedade que então me invadiu quando soube daquela notícia. Piedade pela mulher, pois segundo vários tratados que então lera sobre violência doméstica no lar e no namoro, um agressor dificilmente deixará de o ser, pois qualquer situação que desequilibre o seu quotidiano, poderá despertar a fera adormecida.
E agora ela ali estava, na minha frente, ainda com o poder de me deixar nervosa e receosa. Ganhei alento, afirmando para mim própria, com a convicção possível, que aquele farrapo não poderia voltar a fazer-me mal. Tinha chegado o momento de resolver aquele assunto pendente na minha vida, para que os pesadelos deixassem, de uma vez por todas, de me atormentar. Necessitava de largar aquele fardo para prosseguir a minha caminhada com mais leveza.
— E por agora é tudo! — concluí, estendendo-lhe a mão.
Nesse momento olhei-o bem de frente, e arrisquei, tentando demonstrar uma segurança que estava muito longe de sentir.
 — Já esqueci tudo e já perdoei. Siga a sua vida em paz.
Ele correspondeu ao aperto de mão, suportando o meu olhar sem pestanejar. Nada disse. Acompanhei-o à porta da sala. Fiquei a vê-lo afastar-se, as costas curvadas, um ligeiro arrastar da perna direita.
Quando chegou ao cimo das escadas que o conduziriam ao piso inferior, voltou-se. Nos seus olhos pareceu-me ver a humidade brilhante deixada pelo assalto de alguma lágrima. A sua boca mexeu-se, sem que qualquer som dela saísse. Mas eu pude ler o que ela dizia:
 — Obrigado!
Voltou-se e lentamente foi-se apagando do meu campo de visão, à medida que ia sendo engolido pelas escadas.
A Raquel já não acabou o terceiro período na escola. Foi transferida para os Açores.   

2 comentários:

  1. Brutalmente capaz de ser real, sim! Mas é ficção.Quase tudo. Agora: o que é ficção, e o que é real? who knowse?

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