"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Ainda se fosse um tostão...

No grande armário de castanho da cozinha, guardava Eulália as moedas que lhe serviriam para os gastos da semana. A velha caixa de lata ferrugenta, que antigamente servira para o chá, era agora a depositária das moedas. Moedas contadas, recontadas, regateadas, esticadas, que lhe permitiam ir governando a casa. Era uma mulher poupada, e bem sabia que essa, era uma das muitas qualidades que o seu homem, emigrado no Brasil, tanto prezava.
Certo dia, o sobressalto e a incredulidade tomaram conta dela. Contou, recontou, e tornou a contar…Seria possível? Faltavam 25 tostões!
A sua voz severa e alarmada atravessou a casa. Imediatamente lhe ocorreu que só poderia ter sido o Tó, rapaz em plena adolescência, constantemente tentado pelas más companhias, os cigarros, o jogo…era preciso mão de ferro…
— Ó  Tó, foste tu que me tiraste daqui 25 tostões?
O rapaz acorreu, espavorido.
— Eu?! Eu não, minha mãe!
— Ah! Desgraçado, que me metes nos pinheiros antes do tempo! Quem mais poderia ter sido?
— O que foi minha mãe? O que foi? — acode atarantada Adelina, a filha mais velha, jovem desempenada e cobiçada pelos rapazes da terra, e a Laura, a benjamim, com quatro anos a caminho dos cinco.
Eulália já agarrara no pau de marmeleiro com que moldava as vontades e os caprichos aos filhos, e já o fazia silvar no ar, descarregando a fúria e a raiva acumulados contra a vida.
— Foi este…. desgraçado! Ainda se fosse …um tostão, mas logo vinte e cinco tostões!...Pensa que o vou roubar!... O vosso pai lá tão longe, para vos criar…
—  Dê-lhe, dê-lhe  para baixo, minha mãe! — encorajava Adelina.
A pequenita Laura olhava para aquela cena, sem perceber muito bem o que se passava. E nervosamente, repetia:
— Ainda se fosse um tostão, mas logo 25 tostões!...
Tó lamuriava-se, chorava como criança que ainda não deixara de ser, a boca escancarada, o corpo aos sacões dos soluços, as lágrimas correndo escuras da poeira. Chorava como choram os sedentos de justiça, enquanto clamava a sua inocência.
— Bata, bata, minha mãe! Não fui eu, minha mãe, não fui eu!
Um rebate, um instinto, o cansaço, fizeram-na desistir da persecução deste castigo exemplar. Deixou-se cair sobre um mocho, atirou o pau para um canto da cozinha, e, com a cabeça entre as mãos, ia murmurando:
— Malandro…malandro…malandro…
Tó, acocorado a um canto, repetia a lengalenga:
— Não… fui eu…não fui…eu…hã…hã…hã…não…fui eu….
Ao outro dia, de manhã bem cedo, começou Adelina a juntar a roupa que iria lavar na ribeira. Do bolso do bibe de Laura, que ainda dormia, rolou, reluzente e acusadora, uma  moeda de 25 tostões. Adelina largou a roupa no meio do chão, e correu para a mãe, mostrando a moeda tão cobiçada:
— Olhe, minha mãe, olhe! O Tó tinha razão! Não foi ele que roubou o dinheiro! Foi a Laura!
Eulália fitava, atónita, a filha mais velha!
— Ai a espertinha! Vê, minha mãe! E ainda se pôs a dizer: Ainda se fosse um tostão! Mas logo vinte e cinco tostões!
Confrontada, a pequenita, mal olhou para a moeda que a irmã lhe estendia, correu para ela, reivindicando a sua posse:
— É minha! A medalha é minha!
— É tua, nada! O dinheiro é da mãe! E o Tó apanhou por tua culpa!
Então aquela medalha tão bonita é que tinha sido a razão de tanto barulho! Tinha um barco e brilhava! Apanhara-a do chão da cozinha, guardara-a no bolso do bibe, e apertava-a na mão, enquanto o irmão era castigado. Tinha um barco e brilhava! Era o seu tesouro!
A partir desta altura, esta história passou a circular pelos familiares, amigos e conhecidos da família, como prova da esperteza da garota. Frequentemente Laura era acolhida com a frase:
 — Ainda se fosse um tostão, mas logo 25 tostões! …

Porém, nunca ninguém suspeitou do desconforto que esta história trazia à garota, que aumentava à medida que ela crescia. Ela sabia quanto fora inocente, e repudiava que tomassem como esperteza, a inocência infantil  que custara um severo castigo ao irmão. Hoje, muitos dos que se poderiam lembrar desta história, já não estão vivos. Mas Laura ainda lhe sente o amargor, setenta e seis anos passados.      

2 comentários:

  1. Olá , passei pela net encontrei o seu blog e o achei muito bom,
    li algumas coisas folhe-ei algumas postagens,
    gostei do que li e desde já quero dar-lhe os parabéns,
    quando encontro bons blogs sempre fico mais um pouco meu nome é: António Batalha.
    Que haja muita felicidade e saúde em toda a sua casa.
    PS. Se desejar seguir o meu blog,Peregrino E Servo,
    fique á vontade,repare siga só se gostar, eu vou retribuir seguindo também o seu.

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  2. Obrigada pelo comentário, António! Vou visitar o seu blog, sim, logo que possa.

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