"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

domingo, 5 de maio de 2013

Mulher-criança


Chamo-me Rita, tenho 14 anos e sou empregada doméstica. Ainda não tenho idade para trabalhar, mas a minha patroa ensinou-me a nunca dizer que eu trabalho para ela. Eu só tenho que dizer que estou de visita, se alguém me perguntar. Claro que eu ainda tinha de andar a estudar, mas a escola é uma “seca”. Chumbei no segundo ano, no quarto, e não acabei o sexto. A professora de Português apanhou-me de ponta e eu nunca mais lá pus os pés. A minha mãe não se importa. O que ela quer é o dinheirinho ao fim do mês que a minha patroa lhe paga. Ela diz que até os doutores estão desempregados, e é verdade…e eu tenho emprego. Da escola só tenho saudades da Beta, que era a minha melhor amiga. Foi ela que me ensinou a nunca tirar as cuecas quando íamos com os rapazes para trás da escola, quando estávamos à espera da hora para apanhar o autocarro. O Tony era estranho, já andava no nono ano, mas gostava de me enfiar a língua na boca quando me beijava…assim…linguado, sabe o que é? E eu até gostava. Ele apalpava-me toda e agarrava-me na mão para lhe apalpar a…ai como é que se diz…em Ciências aprendemos o nome …pénis…isso…e era assim…duro, mas nunca deixei fazer mais nada…nunca nenhum homem há de fazer pouco de mim, como o meu pai fez da minha mãe…a gente se não tirar as cuecas, e se não deixar…pronto…assim…fazer mesmo sexo…não há problema…Eu gosto de estar na casa onde estou. A patroa é simpática, e trata-me bem. No dia em que eu cheguei, já vai fazer um ano, ela deu-me um estojo de toilette da Hello Kitty, que eu adoro… com tudo novo lá dentro, só para mim: um sabonete, um champô e amaciador, uma escova para o cabelo, um gel de banho, uma pasta e uma escova de dentes, um desodorizante…tudo novinho, a estrear…disse para deitar o velho para o lixo…olha o velho…nunca tinha tido estojo de toilete, e o sabão azul é que servia para tudo… Disse-me que aquilo era para usar todos os dias, antes de me deitar…Ah! Também tenho uma casa de banho só para mim…É na cave. Adoro deitar-me com aqueles cheirinhos todos no corpo e nos cabelos… não custa nada! É só rodar aquele botão, e lá vem a água quentinha, prontinha…acredite, que é a melhor parte do dia…da noite, quero dizer…pois…do dia e da noite.
 Como à mesa com os meus patrões, porque tenho de dar a comida ao Nuno, que tem dois anos. Eu tenho muito jeito para tratar dele. Até já lhe dei banho! Gosto de brincar com ele, e com os brinquedos. Tem tantos!... Ele é muito fofinho, e ri-se todo quando chego ao pé dele… Cá para mim, já gosta mais de mim do que da mãe dele. Só não gosto de cozinhar. Já deixei queimar o almoço duas vezes, porque fui só espreitar a telenovela, e esqueci-me que tinha o tacho no fogão. Sim, sou a única empregada. Os meus patrões são ricos…acho eu…mas não são tão ricos como os das novelas, que têm empregados para tudo. O que é que eu estava a dizer?... Ah! Pois…Quando a patroa chegou, e viu o disparate que eu fiz, levantei logo a mão para ela não me bater na cara, esperei e…nada. A patroa disse-me apenas que tenho de ter mais cuidado, mas que ainda estou a aprender. Se fosse em minha casa, a minha mãe berrava-me o dia inteiro, e dava-me uma malha, que eu até andava de roda…
Aqui tenho um quarto só para mim, e até tenho lá uma televisão. A casa dos meus patrões é grande, e…sabe… até tem uma sala com as paredes cheias de livros até ao teto! A minha patroa já me emprestou uns para eu ler, mas não tenho paciência, dá-me logo o sono…Em minha casa…a bem dizer não é uma casa como deve ser…é um barracão de tijolos…nem portas tem!...Quer dizer, tem só a porta da rua. O meu padrasto é que a construiu, e está sempre a dizer que ainda há de ser uma casa como a dos ricos…mas ele gosta mais de copos do que de trabalhar…então…na minha casa só há uma sala grande, a cozinha e a casa de banho, que só tem retrete, e uma bacia para lavar a cara e as mãos…mas não há água canalizada, temos que a ir buscar ao poço.  No inverno fazemos uma fogueira lá fora, aquecemos a água em baldes de zinco e tomamos banho numa bacia grande. Dormimos todos na mesma sala, eu e os meus irmãos e há uma cortina a separar-nos da cama onde dorme a minha mãe e o meu padrasto. Eu detesto o meu padrasto. Ele tem a mania que é meu pai, mas não é. Só no papel. O meu pai verdadeiro não casou com a minha mãe. Quando soube que ela estava grávida de mim, abandonou-a e sempre disse que eu não sou filha dele. Mas o meu padrasto deu-me o nome no registo, para eu ser filha dele. Detesto-o. Quando se embebeda chama-me nomes feios, e diz que eu sou uma puta como todas as mulheres. Ele bate na minha mãe e nos meus irmãos, e, às vezes, tínhamos que fugir de noite, andar pelos montes, porque ele ia atrás de nós com uma faca e dizia que nos matava. Mas a minha mãe continua a viver com ele. Ela gosta mais dele do que de nós, que somos filhos dela. O meu irmão, que é mais novo do que eu quatro anos, diz que quando crescer o há de matar. É por isso que eu gosto de aqui estar. Não me importo. Quando vou aos fins-de-semana gosto de estar com os meus irmãos, e com a minha irmã, que ainda é pequenina. Mas só isso. Aqui ninguém berra comigo, e ninguém diz asneiras. E a minha patroa dá-me roupas dela e até me ensinou a fazer malha. E eu já fiz um casaco de malha que ela me ensinou a fazer. Pronto…acho que já não tenho mais nada para dizer…Então…gostou? Quanto é que me vai pagar? Como é que se vai chamar o livro onde vai pôr isso tudo? 

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