"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Fingimento


“Anda, despacha-te. Sei bem que tens mais que fazer. Escusavas de cá vir. Não te chamei cá, e, para vires com essa disposição, é melhor não pores cá os pés…Que disposição?! Ainda me perguntas que disposição? Então eu não vejo? Estúpida é que eu não sou!... Deixa!...não preciso da tua ajuda…posso muito bem pegar na chávena sozinha! Não estou inválida! Como é que faço nos outros dias, hem? Estava bem arranjada, se estivesse à tua espera!...Mas…quem te deu autorização para mexeres nas minhas gavetas? Não quero que mexas nas minhas gavetas! Tenho tudo o que preciso, muito obrigada! Não sei porque é que estás tão preocupada a ver o que preciso ou deixo de precisar! Bem te conheço! Já em miúda eras assim! Sempre a espiolhar, a espiolhar, e o que te agradava, não era para mais ninguém. Coitadinho do teu irmão! Ora essa! Se não vem mais vezes, é porque tem a vida dele, mas telefona-me a toda a hora, enquanto tu…Já te disse! Deixa os armários! A Amélia foi às compras. Comprou tudo o que preciso. Ai sim?! Pois digo-te eu, que ela se incomoda mais comigo do que tu! É a companhia que me resta! Conheço-a bem, conheço! Assim como te conheço bem a ti, Maria Clara! É triste, mas é verdade! Preocupa-se ela mais comigo, que não é da minha família, do que tu, carne da minha carne. O quê?! Com certeza também querias que te pagasse como pago a ela, não? Ai não? Então querias dizer o quê?! Ela é do que vive, pobre criatura! E faz muito mais do que aquilo para que foi contratada. Vai, vai. Vai à tua vida! Tu não me puxes pela língua! Ai queres ouvir a verdade? Queres ouvir a verdade nua e crua, queres? Carinho, menina! Carinho e atenção. E paciência. Isso, não há dinheiro que o pague, estás a ouvir ? É isso que a Amélia me dá. Ai é fingido?! Pois que seja! Mas faz-me bem. Também tu podias fingir ! Custava-te muito, fingir uma vez por semana, uma hora por semana, custava-te muito fingir? Tratares-me com carinho, com paciência, com atenção, sem estares sempre a olhar para o relógio, Maria Clara? Não quero saber se é hábito, se é feitio, se é defeito. O que eu tenho a certeza, é que é falta de educação. É falta de e-du-ca-ção. Lindo exemplo, que tu dás aos teus filhos! Já te disse que para vires cá com essa cara de obrigação, não precisas de cá voltar! Finge, mulher, finge! Eu…não me im…porto. E eu também finjo… que acredito…que acredito no…teu amor…no teu carinho…eu finjo…Não, não estou a chorar, não…Deixa…deixa…Não sei…não sei…mas a mim parece-me que vens sempre à pressa… a correr…cumprir uma …obrigação…uma chatice…que sou ….um… far…do….hum…hum…hum… olha a chávena…segura-a…está bem, filha, acredito… acredito…sim…desculpa…mas fico toda a semana à espera, ansiosa, a espreitar a janela…e depois passa tão rápido…não sei porque sou tão desagradável…penso sempre que vou ser mais simpática…mas depois…já está…quando me apercebo, já estou a disparatar…assomas à porta com aquela cara dura, o rosto fechado. Acho que vens assim … porque tens que me vir visitar…que lamentas o tempo que passas comigo…Pronto, filha, desculpa, não chores, perdoa a tua velha mãe. Olha, hoje ficas mais um bocadinho, está bem? Vamos lanchar as duas…como antigamente, sim? Vamos fingir…que és pequenina. Eu conto-te uma história, está bem? Aquela que tu gostavas tanto…A da princesa Estrela. A Amélia…comprou uns pastéis de Belém. Estão numa caixa. No armário da casa de banho. Por detrás das toalhas. Sabia que aí não os encontravas…”

4 comentários:

  1. Uma cena muito bem contada que se deve passar aos montes por aí... gostei bastante deste texto, tipo peça de teatro, o crescendo e a volta :) todas as famílias são disfuncionais qb... :) Não sei porquê, tenho a sensação de já ter lido isto... mas ultimamente ando muito com essa sensação em vários blogues, ou é dejá vu ou é senilidade precoce, rrsss Beijinhos

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  2. A Eva é capaz de ter razão: não é um tema novo (e qual é?). Mas está bem explorado :)

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  3. Acredito que tenha essa sensação, pois este tipo de diálogo/monólogo(?) acaba por ser recorrente nas nossas vidas( ou na das pessoas que nos rodeiam). Mas saiu-me fresquinho especialmente para a participação na Fábrica...Senilidade precoce?!Deve ser para rir...Nem senilidade, nem precoce...Acredito na sensação do "déjà vu". Assalta-me com frequencia...

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  4. Olinda,boa pergunta...Que tema é? Ocorreu-me a propósito do desafio da Fábrica, "Fingimento". Mas servirá também para Solidão, Amargura,Azedume...etc., etc...
    Obrigada por passar por aqui.

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