"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O Gato



Há algum tempo que me debato entre a vontade de ter um gato, e o medo de, por qualquer motivo, vir a sentir que abri portas a um empecilho de que não me apetece cuidar. Sempre que aparece algum artigo que fala de gatos, leio, com curiosidade, vou-me apercebendo da grande espiritualidade que lhes é atribuída, e vou-me deixando conquistar pela personalidade destes bichanos.  
Mas a decisão tarda a vir. De vez em quando, aparece uma ou outra amiga a oferecer-me um bichano. Tenho respondido que gosto deles pretos. Desta vez, a oferta era irrecusável: um gatinho preto, de olhos verdes, manso (por enquanto), estava pronto a ser por mim adotado.
Cortei-me. Consultei o meu filho, que se mostrou favorável ao acolhimento de um novo membro na família. Consultei a minha filha, que mostrou uma grande abertura, confessando como também ela gostaria de ter um, mas como o marido é alérgico, está fora de questão. Mas também me alertou para o caráter imprevisível de alguns deles, dando-me referências de bichanos que pertenciam a algumas das suas amigas. Uns meigos, outros completamente malucos e agressivos... É preciso certificar-me da índole do animal. Fora isso, são muito independentes, não dão trabalho, ficam sozinhos por períodos curtos…
Mas, pensei: e se adoece? E se se revelar deficiente, com o de uma das suas amigas? Se tiver um gato, tenho que ser responsável por ele, pensar que, nos próximos …vá lá…15 anos, estou de vida atada a um gato…Não quero ter de devolver o bicho…Se tomar essa responsabilidade, tem que ser para o melhor e para o pior, até que a morte nos separe, a dele, ou a minha. Pois…bem sei que estas promessas se podem violar… Mas não quero ter que me divorciar de um gato, pronto! Perguntei ao meu marido. Ficou ligeiramente alterado, enquanto me dizia que, se eu tomasse essa decisão, o gato era exclusivamente meu, não queria saber da existência do animal, eu é que dava comida, cuidava, levava ao veterinário… Sabia muito bem como eram as coisas, o que tinha acontecido com a cadela, que era minha, mas depois ele é que teve de cuidar…
Respondi-lhe que a cadela tinha vindo para casa a conselho do pediatra, por questões terapêuticas…Era benéfico para um desenvolvimento saudável dos miúdos, partilhar a responsabilidade de um animal. A cadela não era minha, era deles. Mas, de facto, quem tratava, era eu. Até ficar farta de estar constantemente a limpar a trampa que ela fazia, pois nunca a consegui educar a fazer as necessidades num sítio certo.
Bom. Decidi, então, que não ia haver gato. A nossa filha quis saber porquê. Eu comecei a explicação: porque o pai…
O meu marido innão gostou.
__Alto lá! Não é porque eu…Se quiseres assumir, assumes, mas o gato, para mim, não existe.
__Então, e nós somos o quê? Eu vivo contigo, ou vivo com o vizinho? Não somos uma família? Eu só traria um gato para casa, se tu aceitasses…
__Pois, com a cadela…
__Mas a cadela foi diferente…Tu não querias, mas eu achei que era importante para os nossos filhos…E tu acabaste por aceitar e gostar dela…
A conversa ficou por aqui, para se não azedar.
Hoje fazemos anos de casados.
O meu marido apareceu em casa com um ar comprometido. Trazia uma caixa com ele. Pousou-a em cima da mesa, e disse-me:
__Nem sabes o que aconteceu! A Dona Ermelinda, aquela minha cliente que mora na aldeia, e nos costuma mandar ovos…
__Sim!...__ respondi com um grande sorriso, adivinhando o que vinha na caixa, enquanto o meu olhar ufano e surpreendido passava da caixa para ele, e dele para a caixa.
__Deu-te um gato!...__ rematei
Ele limitou-se a assentir com a cabeça, lentamente…
Dirigi-me à caixa, levantei a tampa, ansiosamente, e… lá estava um gato: um gato bem lustroso, não preto, como eu sonhara, mas castanho. Castanho dourado. Jazia no fundo da caixa, inerte, sereno, placidamente. Sem uma palavra, tirei o gato da caixa. O gato era de louça.

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