"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A Fotografia

Esta fotografia salvou-me. Salvou-me, e assegurou ao Titó um lugar de destaque entre os fotógrafos nacionais, ao ganhar o concurso para que se candidatara. Lembro-me muito bem do dia em que foi tirada. Eu não teria mais de cinco anos, e foi o Titó, o filho da tia Marta, que a captou com uma caixa que colocou à frente da barriga, enquanto dizia: olha o passarinho! À caixa ele chamou Kodak. Com os dedos, penteou-me a franja de cabelos castanhos, sobranceira aos olhos negros e imensos onde cabiam todos os sonhos, todas as possibilidades, todas as incógnitas. É uma fotografia a preto e branco, mas sei que o meu casaco era vermelho. Pertencera à filha da patroa da minha tia, que não chegara a usá-lo, por ter aumentado de tamanho mais do que era esperado. A velha bateria onde está encaixado o varal para prender o cordão da roupa, fora resgatada pelo Zezito Tolo uns dias antes, de um camião enferrujado e abandonado na lixeira. Nesse dia o pátio estava liberto de roupa. As mulheres daquela ilha, tinham partido de manhã cedo para a ribeira com as suas trouxas e ainda não tinham voltado. Este era um bairro pobre dos subúrbios do Porto. A fotografia está gasta e amarrotada, tantas vezes olhei para ela, procurando o farol para resistir às vicissitudes da minha vida. Nunca me separei dela. Eu era uma miúda tímida, sonhadora, curiosa. Cresci entre os cordões de roupa que se cruzavam pelo pátio ladeado de casas velhas, degradadas, às quais todos os anos as chuvas arrancavam mais um bocado de reboco. Ano após ano, as manchas de humidade iam avançavam mais um pouco, desenhando nas paredes das casas um mapa irregular, mas de contornos caprichosos. Nem no verão o cheiro bolorento se descolava das paredes, da roupa, da pele. Alguns vidros das janelas iam sendo substituídos por pedaços de papelão grosseiramente recortados das caixas de cartão que pedinchávamos na mercearia. Os telhados eram remendados com chapas de zinco. Nos cordões, as roupas dos vizinhos, tal como as nossas vidas, entrelaçavam-se numa teia emaranhada.
Durante muito tempo, o meu mundo confinou-se ao espaço delimitado pelas casas, e eu sonhava com o dia em que poderia passar para além daquele pátio. De dia, ao olhar para o retalho do céu por onde voavam as andorinhas, desejava voar com elas para sair dali. De noite, olhava as estrelas e acreditava que elas eram habitadas por alguém que colhia os meus sonhos de liberdade. Não tinha com quem brincar, pois não havia crianças da minha idade. Os jovens que ali viviam, começavam a trabalhar mal acabavam a instrução primária, e alguns nem isso, e eu ficava sozinha. Os desenhos caprichosos que a humidade imprimia nas paredes daquelas casas, alimentavam o meu imaginário. Nessas manchas de humidade via eu rios, árvores, montanhas, animais, aves, crianças, homens e mulheres que se animavam nas histórias que eu construía. A minha tia, que me acolheu quando os meus pais morreram, e que me criou, pouca paciência tinha para os meus devaneios. Costumava dizer que eu lhe caíra nas mãos quando ela tinha idade para ser minha avó. Mas criou-me o melhor que soube, e sempre contou com a solidariedade dos vizinhos. Eram várias as famílias que ali viviam, com as desavenças, disputas e ciúmes normais, que não raras vezes ultrapassavam as paredes das casas de cada um e se estendiam pelo pátio comum, tornando de todos os conflitos, levando uns e outros a tomarem partido por quem lhes parecia. Havia zangas, ameaças, palavras azedas. Porém, se algum membro daquele agregado coletivo fosse de alguma maneira molestado por alguém exterior ao pátio, as causas passavam a ser defendidas com zelo e sangue, se preciso fosse, como se de uma única família se tratasse.
Olho a fotografia e parece-me impossível que sobre ela tenham decorrido cinquenta anos! Quantas mágoas…Quantas desilusões...Cantei e chorei, sofri e fiz sofrer, amei e fui amada, odiei e fui odiada. Vivi no luxo, viajei, fiz cruzeiros, atravessei o mundo, passaram pelos meus braços mais de mil homens, mas nenhum ficou. Nem eram para ficar. Não na vida que me escolheu e que eu decidi seguir. Não sei porque lhe chamam vida fácil. Fácil nunca foi. Cedo me apercebi que a instrução seria o passaporte que me remiria de uma vida de miséria, e aprendi a tirar partido do meu corpo, único bem que possuía. Começou pela necessidade de pagar os estudos na faculdade, e não mais parei. Nos momentos em que me sentia aviltada, desprezível, conspurcada, recorria a esta fotografia, fechava os olhos e sentia-me menina outra vez, pura e genuína, com todos os sonhos ainda por cumprir… Agora acabou. Retirei-me. Ganhei mais do que o suficiente para viver uma vida um pouco acima da média. Em caso de necessidade, posso sempre recorrer às minhas joias, às roupas de griffe…e aos direitos autorais do livro que contará a minha vida obscura e que será publicado em breve.

 De vários lugares no mundo, olhei as estrelas, o céu vasto, observei as andorinhas voando livremente, mas era sempre àquele hexágono de céu estreito e restrito da minha infância que eu voltava. Estranho paradoxo! Vendi-me para sair, e tanto desejei voltar! Mas jamais podemos voltar a banhar-nos nas mesmas águas do rio, não é assim? Aquele cantinho de casas degradadas que eu guardei no coração, já não existe. Deu lugar a um imponente imóvel de escritórios moderno, envidraçado. Resta-me a fotografia. 

2 comentários:

  1. Poético este conto, julgo que uma estória, que de tão real me deixou agarrado a cada letra, a cada palavra como se vivesse o momento.
    Parabéns.
    Encontrei um Blogue para voltar sempre.

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  2. Obrigada, Manuel, pela sua visita e pelas palavras elogiosas. É de facto um conto, inspirado por uma fotografia que alguém me mostrou, e que fazia parte de um maço achado no lixo, enfim, um pequeno tesouro.

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