"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

terça-feira, 17 de abril de 2012

Vai um cafezinho?

Estávamos sozinhas, sem vontade de cozinhar, numa sexta-feira. Eu e a Rita. Decidimos ir jantar ao Centro Comercial. Jantámos sossegadamente, e conseguimos manter uma conversa serena, sem nos irritarmos, o que é raro.
No final, ela quis ir dar uma volta a uma das muitas lojas de roupa. Embora sem vontade de fazer compras, fiz-lhe a vontade. Deixei-a deambular a seu belo prazer e eu própria não resisti a um vestido preto, que decidi comprar e experimentar em casa.
Quando estávamos na fila para pagar, ela mostrou-me uma blusa que me agradou. Quis saber se havia noutra cor, e abandonei a fila, regressando pouco depois, dizendo-lhe que as cores não eram do meu agrado. Entretanto, atrás da Rita estava já um indivíduo, acompanhado de uma miúda, certamente a sua filha. Quando chegámos à caixa, a minha filha quis pagar as suas compras. Foi para mim uma sensação inusitada aquela! Senti-me a vivenciar um momento histórico da minha vida. A minha filha pretendia pagar as suas compras com o produto de seu trabalho, embora os seus pacientes ainda fossem poucos, e eu estivesse ali, disponível para pagar.
Mas a minha exultação interior havia de ser cortada por uma voz um tanto arrastada atrás de mim:
— Mas como é que a senhora passou à minha frente?
Olhei aquela cara de sapo, os olhos escondidos atrás das lentes, as repas do cabelo a tentarem esconder uma calvície precoce.
— Desculpe, mas eu já estava à sua frente. Estou com a minha filha, e só me afastei para verificar uma peça de vestuário.
— Não sei nada disso. Eu até pensei que iam pagar tudo junto!
Fiquei estupefacta, sem perceber a lógica daquele raciocínio. Qual era a diferença, se pagávamos tudo junto, ou separado? Eu não estava interessada em criar ali uma discussão da qual sairia a perder, enaltecendo o ego do senhor. Não costumo ter agilidade mental nem verbal para aparar e devolver as estocadas de espadachins exímios. Claudiquei.
— Eu estou com a minha filha. Pensei que tinha percebido. Mas tem razão. Faça o favor. Desviei-me e cedi-lhe a vez.
— Agora não. Já começou!
O senhor da caixa observou, conciliador.
— Há mais caixas, senhor. Vou já abrir outra.
O cara de sapo não desarmava.
— Não é isso que está em causa, percebe?
— Eu não me meto! — retorquiu o jovem da caixa erguendo os braços apaziguadoramente.
O cara de sapo continuou a resmungar, enquanto outra caixa era posta à sua disposição.
Eu ficara visivelmente perturbada. Enquanto fazia o pagamento, o jovem da caixa piscou-me o olho, manifestando dessa forma a sua solidariedade.
Ainda tentei balbuciar algumas palavras de justificação, explicar que ela, a minha  querida filha, se oferecera para pagar, pela primeira vez, estando eu ali na sua companhia… Mas ela interrompeu-me.
— Deixa, mãe, deixa!
Calei-me e viemos embora. Mas não me saía da cabeça o ar daquele peralvilho, a tentar dar-me uma lição de civismo. A mim, que eduquei os meus filhos no respeito pelos outros, que cedo o meu lugar no autocarro aos idosos, às pessoas que estão carregadas, às mães grávidas ou com crianças, que cedo a minha vez nas filas de pagamento dos supermercados quando as pessoas têm apenas uma ou duas peças para pagar, se eu tiver o carro cheio, que facilmente peço desculpa, “com licença”, e “obrigada”, enfim, que me considero atenta aos outros e respeitadora! Sentia-me injustiçada! O bom senso apelava a que esquecesse o incidente, e nem sequer lhe desse o mínimo de importância. Mas o meu amor-próprio estava ferido, e eu fervia interiormente de raiva e impotência. A minha filha, percebendo o meu estado, tentou serenar-me:
— Mãe, esquece! Olha, eu ainda vou ao supermercado comprar os meus iogurtes. Vens,ou queres ir para o carro?
Esta deixa deu-me a certeza de que esta história não ia ficar por aqui. Peguei na chave do carro. Olhei em volta, e, apressadamente, dirigi-me para a máquina automática distribuidora de bebidas. Tirei um café, e coloquei-me à porta da loja, qual felino que aguarda a sua presa. O boca de sapo saía, calmamente, na companhia da filha. Estuguei o passo, avancei, e tropecei no homem, vertendo o conteúdo do copo de plástico na sua roupa:
— Desculpe, desculpe, não o vi! Espero que não se tenha queimado!
Apanhei o copo de plástico do chão e afastei-me rapidamente. De caminho atirei o copo no contentor amarelo do lixo. Alguns metros depois, sem parar, olhei para trás, tentando avaliar os estragos. O homem estava atónito, congelado, a olhar para a roupa toda manchada. A garota esfregava-lhe o blusão, provavelmente com um lenço de papel.
Ainda tive presença de espírito para informar a empregada da limpeza com a qual me cruzei e que fazia naquele momento a manutenção, que os seus serviços eram precisos no outro extremo do piso.
Quando a minha filha chegou ao carro, eu ainda estava engasgada pelo riso. Pelo menos, agora, o homem tinha razão para me amaldiçoar.


4 comentários:

  1. Ai que vingativa. E o café já tinha açúcar?

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  2. Não! Ela até foi boazinha!O café com açúcar ia fazer nódoas difíceis de tirar. E as lavandarias estão caras! Assim, lavava tudo em casa...

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  3. E se... da próxima vez que lá fores, apanhas com uma vingança servida gelada??? :))))) Também já passei pela experiência da minha filha pagar as suas coisas e eu sentir um orgulhozinho que me deixa aquele sorriso parvo na cara que tento disfarçar... :))

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  4. Pois é!É incrível como os sucessos das nossas crias,aparentemente insignificantes,são tão importantes para nós.Só vivendo-os!

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