"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Metamorfose


Sentia a cabeça pesada, os membros entorpecidos, uma sonolência maior que o seu próprio tamanho, o qual, diga-se em abono da verdade, havia aumentado só nos últimos tempos, mais, muito mais que o dobro. É certo que o seu apetite era voraz…Agora, só de pensar nisso, sentia-se invadir por um enjoo que se estendia a todo o seu corpo…Fechou os olhos. Estavam tão pesados!…Voltou a abri-los, e a fechá-los, num movimento intermitente e lento. Sentiu saudades das irmãs, quando serpenteavam pelo prado e tudo à sua volta lhe parecia promissor… E, quando ela dizia que o que queria era dançar, voar, riam-se dela… E pensar que chegou a ter inveja delas, quando as viu serem transportadas pelos ares no bico de um pássaro, e uma gritou:
— Estou a voar! Estou a voar!
As irmãs acabaram no estômago de uns pássaros glutões…é claro que isto só o veio a saber muito mais tarde, quando a sua amiga Brisa da Tarde lhe contou como esta breve ilusão se transformara em pesadelo, no momento em que as suas irmãs se viram a ser sugadas para as goelas de passaritos ávidos, todos de bicos bem abertos. E quando ela se mostrou horrorizada com a triste sorte das irmãs, a Brisa da Tarde explicou-lhe que este era o destino de muitas das lagartas da sua condição…Mas ela, a lagarta Tixa, não se conformava…Não queria acabar como elas…A sua amiga também lhe explicou que o seu destino, se ela fosse cuidadosa, podia ser outro…um destino igual ao da sua mãe.
 Conheceste a minha mãe?! — perguntara, entre sobressaltada e curiosa.
— Claro que conheci a tua mãe! Era a mais bela e graciosa dançarina que borboleteava sobre as flores deste jardim!
— Dançarina…a minha mãe…bela…mas eu…eu sou tão feia!…
— Que ideia, menina! Tu tens a beleza própria das lagartas da tua condição!
— Não! Todos me acham feia! E os meninos da casa grande chamaram-me nojenta, repugnante, horrorosa!…sacudiram-me da roupa, e correram a lavar as mãos aos gritos…
— Ora, esses são meninos da cidade! …Têm muito que aprender sobre a natureza, se quiserem instalar-se no campo…
— Por pouco não me pisaram aos pés…
— E o que fizeste?
— Corri a esconder-me debaixo de uma folha de couve…Mas, por favor! Conta-me mais coisas sobre a minha mãe! Como era ela?
E a Brisa da tarde, com um sorriso nostálgico, foi contando.
— Era sonhadora, como tu. E acreditava firmemente que o seu destino se iria cumprir até ao fim…Nunca se deixou vencer pelas contrariedades…
— Não?!
— Não! Era invulgarmente esperta e cuidadosa… Por isso chegou a borboleta.
— Mas, então, se ela era borboleta, e tão bonita, por que razão eu sou uma lagarta tão feia?
A Brisa da tarde sorriu.
— És tão curiosa! Sabes, a maior parte das lagartas nunca chegam a borboletas. Nunca sequer sonham com isso, nem se interrogam acerca do seu futuro. Mas tu és diferente…
— Mas que mistério! Não chegam a borboletas, porquê?
— Pensa no que aconteceu às tuas irmãs! E não são só os pássaros que são perigosos! As abelhas, as moscas, as formigas, as doenças, as chuvas…
— Sim, sim, eu estou sempre alerta! Não quero ser comida, não quero morrer! Eu quero voar, voar, beijar as flores, receber o abraço do sol, correr mundo!...Achas…achas…que  posso?
— Claro que podes!
— Mas como? — perguntei, algo impaciente.
— As borboletas não nasceram borboletas, nem sempre foram tão belas como as vês.
— Não?!
A tua mãe, tal com tu, saiu de um ovo, e começou por ser uma belíssima lagarta.
— Ooooooooh!.......
— É verdade! Usou sempre de todos os cuidados para escapar aos predadores, esses bichinhos que se alimentam de lagartas, e para não adoecer. E conseguiu transformar-se numa linda borboleta, com uma combinação de cores que era um deleite para os olhos! E pensou em ti e nas tuas irmãs com muito carinho, escolhendo, para pôr os ovos, um sítio abrigado, com muita comidinha para vocês comerem logo que nascessem!
— Querida mamã! Mas diz-me, então, como é que eu faço?
— Não sejas impaciente! A vida deixaria de ser aliciante se soubéssemos tudo o que nos vai acontecer! Basta que deixes a Natureza fazer o seu trabalho. E deixa-te levar pelo teu instinto. Mas tem cuidado! Continua a proteger-te dos perigos como até aqui. E alimenta-te muito bem, pois vais precisar de todas essas reservas. Agora tenho que ir. Mas não te preocupes! Estarei vigilante e atenta! Até um dia!
Agora estava sozinha, sem mais ninguém no mundo…Amigos…não eram verdadeiros todos os que a humilhavam, chamando-lhe feia, nojenta…Só a Brisa da Tarde…só ela é que era mesmo sua amiga…mas também a deixara sozinha, com uma conversa de mistério, que só ela é que tinha que descobrir…tretas, certamente, só para ela não ficar triste…Ah! Mas a última conversa encheu-lhe o coração de esperança…O melhor, por agora, era dormir…escolhera um sítio muito escondidinho, e protegera-se bem, dentro de seu casulo...dor…mir…Aaaaaaaaaaaaah!...
No dia em que a Brisa Tarde tivera aquela conversa com Tixa, partira, enternecida com aquela menina tão sonhadora! Então foi passando com o seu manto subtil e transmitiu aos pássaros, às abelhas, às formigas, ao Vento Norte, às nuvens, que a lagarta Tixa que habitava a horta da casa grande era sua protegida. Que se não atrevessem a colocar a sua vida em perigo, pois aquela jovem desejava cumprir o seu destino, e tinha todas as condições para isso. Em breve todos se deleitariam ao vê-la cirandar pelo jardim, transformada numa bela borboleta, tal como o fora a sua mãe, a sua avó, a sua trisavó, até ao perder dos tempos.
Os dias foram passando. E os meses. Protegida pela ramagem de uma laranjeira, Tixa continuava dentro de seu casulo, calma e sossegada.
Um dia sentiu-se despertar, com se uma música interior e desconhecida lhe fizesse vibrar todo o seu corpo. Abriu os olhos. Estava tudo às escuras, tudo muito aconchegado dentro da sua casinha quentinha. Sentia-se muito bem, porém esfomeada e com vontade de enfrentar a luz do sol. Apetecia-lhe espreguiçar-se. Fez um movimento, mas a reação que esperava obter foi deveras estranha. Ela havia-se enovelado sobre si mesma, mas agora sentia o corpo mais comprido, mais leve…mexeu as patas da frente…meu Deus, que patas tão compridas!…sacudiu-se…e sentiu algo exterior a si própria, sobre o seu dorso, a querer levantar-se…Queria mexer-se, esticar-se, mas não conseguia…Em pânico, sem perceber o que lhe está a acontecer, reúne todas as suas energias. Sacode-se. Faz força nas patas, e atira com elas. Espaneja-se com quantas forças tem… Sente algo a quebrar-se, e a casa que ela construíra, a descolar-se do seu corpo. O sol quente envolve-a num abraço…Um último esforço, e ela vê, então, entre atónita e louca de felicidade, umas lindas asas coloridas, a erguerem-se, presas ao seu dorso…Experimenta-lhes a força, planando com elas no ar, batendo-as uma e outra vez. Inicia então uma dança gloriosa sobre o jardim, uma dança de louvor ao sol e à natureza, com as asas levantadas e palpitantes. A Brisa da Tarde chega, suave e leve, e segreda-lhe:
— Seja bem-vinda a este jardim, a borboleta mais bela!

6 comentários:

  1. Obrigado pelas palavras :) Gostei muito do seu texto! Um bela participação!*

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  2. Que lindo conto!
    Que pena eu não ter crianças em casa, pois iria contar-lhes esta história antes de adormecerem. Digno de um livro infantil.
    Muito bom!

    Bj

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  3. Obrigada, Miss V. Um beijinho também para si.

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  4. Mz: escrevi este conto a pensar em alguns meninos, e nas incursões pelos infantários e escolas do primeiro ciclo que espero levar a cabo como contadora de histórias.
    Fico feliz pelas saus palavras.

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  5. Lindo! Apetece-me copiar e enviar para o infantário da minha filha.

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  6. Esteja á vontade| Desde que indique a origem, pode levar o que quiser!

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