"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Alma perdida...

Puxei uma cadeira e sentei-me. Àquela hora a esplanada estava quase deserta. Escassos eram também os transeuntes que atravessavam a rua Formosa. Numa mesa, duas senhoras já algo entradas na idade, cochichavam. Noutra, um homem de panamá irrepreensivelmente branco folheava o jornal. Nas mãos, as manchas castanhas apontavam para uma idade já avançada, confirmada pela teia de sulcos que lhe marcavam o rosto.
Sentei-me de costas para a pastelaria, de frente para o antigo mercado, a que a intervenção de Siza Vieira não logrou integrar na vida da cidade. Por ali ressoam os ecos da antiga vivacidade, animação e colorido de que agora não restam os mais ínfimos vestígios. Também nas minhas nostálgicas memórias latejavam vibrantes e buliçosos os mesmos ecos. Um sol tímido penetrava pelo buraco do guarda-sol abrindo um círculo de claridade na sombra projectada na mesa onde me acolhi.
Algumas pombas saltitavam na calçada. Outras atreviam-se a ir debicar nas mesas migalhas esquecidas. Apesar do que li na Net sobre as pombas — tão ou mais perniciosas que os ratos, uma vez que as asas lhes permitem a propagação mais rápida de doenças — não consigo ter para com elas a mesma atitude de instintiva repulsa. Não são elas o símbolo da paz?
Passado um bocado, a mesa ao lado da minha, mas um pouco mais à frente, foi ocupada por outro idoso. Não me apercebi da sua chegada, absorta nos meus pensamentos e reflexões. Também ele procurou posicionar-se de costas para a pastelaria, e de frente para o mercado. A frequência pendular com que retirava um lenço da algibeira esquerda, e o passava pelo rosto, atraiu a minha atenção. Inicialmente pensei que estaria constipado. Mas depressa me apercebi de aquele movimento era destinado a limpar os olhos. O empregado, sem que ele tivesse pedido, trouxe-lhe um pastel de nata e um galão. A familiaridade do gesto levou-me a concluir que a presença daquela personagem era ali habitual. A reforçar essa suspeita, a atitude de conforto do funcionário que levou a sua mão ao ombro do indivíduo, e lho apertou suavemente. O homem olhava fixamente em frente, para um determinado ponto do mercado. Lentamente retirou um saco de pano castanho pouco maior que a sua mão, do bolso interior do seu blusão gasto pelo uso. Abriu os cordões do saco e tirou de lá de dentro um fragmento de um azulejo que colocou sobre a mesa. Retirou um papel dobrado quase a desfazer-se e abriu-o também em cima da mesa. Tive alguma dificuldade em identificar o papel. Era uma nota de vinte escudos. Em seguida retirou um rosário de contas de vidro e colocou-o junto dos outros acessórios. Depois recostou-se na cadeira, colocou a mão direita sobre aqueles objectos, e chorou. Chorou mansamente, sem ruído. Apenas os suspiros profundos a levantarem-lhe o peito lhe denunciavam o choro.
Aproximei-me.
— Desculpe, sente-se bem? Precisa de alguma coisa?
Abriu os olhos azuis, baços e aguados. Fitou-me com uma mágoa tão profunda…Não me respondeu. Apenas o seu braço se levantou num gesto largo e circular, abarcando o mercado. Deixei-o só.
Quando fui à caixa pagar, o empregado notou a minha perturbação.
Soube então que aquele senhor possuíra em tempos um posto de venda de flores no antigo mercado. Nunca se conformara com a mudança. O seu negócio no novo mercado para onde foram mudados os vendedores, nunca florescera, porque, segundo ele, a sua alma não o acompanhara. O velho viu-se vítima de várias desgraças: tempestades que destruíram as suas estufas, pragas mortíferas e insanáveis que arrasaram a sua produção de flores.
O pastel e o galão eram oferta dos donos da pastelaria, compadecidos com o sofrimento do velho.
Há mais de dez anos que, todas as semanas, ele voltava ali, ao local onde fora feliz, para se unir em pensamento à sua alma.

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