"Todos os meus versos são um apaixonado desejo de ver claro mesmo nos labirintos da noite."
Eugénio de Andrade

terça-feira, 18 de maio de 2010

Chegaram as andorinhas

Meu Deus! Chegaram as andorinhas!
Um gorjeio eufórico e característico obrigou-me a levantar a cabeça do meu trabalho. Vi-as, voando perto de mim. E, num flash, também eu voei até à minha infância, a um momento preciso…
Eu era muito pequena ainda, mas registei fotograficamente esse momento. Vivíamos no segundo andar, na casa da praça, e eu cheguei ao quarto dos meus pais que tinha três janelas altas e rasgadas, com a parte superior ovalada e através das quais eu só conseguia vislumbrar o céu, dado o meu tamanho. Então arrastava uma cadeira e ficava empoleirada a observar, através da janela que dava para a praça, as pessoas que passavam lá em baixo, o pátio que conduzia à entrada da loja onde o meu pai trabalhava, e a vê-lo entrar e sair, ocupado nos seus afazeres. Mas, naquele momento, ainda antes de ter tempo para arrastar a cadeira para perto da janela, fiquei a olhar o céu…
Vi uns pontos negros a fazerem acrobacias no céu, a aproximarem-se e a afastarem-se em círculos ora mais largos ora mais apertados, acompanhados de uns chilreios hilariantes, e a minha alma desatou a cantar de alegria. Identifiquei-os como pássaros. A minha mãe entrou no quarto, pegou em mim ao colo, aproximou-se da janela e disse:
__ São as andorinhas, filha, chegaram as andorinhas.
Fixei o tom alegre e jovial da sua voz.
Chegaram. O mesmo sentimento de ingénua felicidade que experimentei nessa tarde em que as vi cruzar o céu apossou-se de mim. Recebi-as no quintal da minha casa, sentada a uma mesa redonda de ferro enquanto corrijo os trabalhos dos meus alunos, com o mesmo encantamento, passados quase cinquenta anos.
É fantástico o poder dos sons, dos ambientes, que nos transportam àquilo que pensávamos sepultado no fundo das nossas memórias.
Sinto-me feliz!
É já a festa da primavera que me invade os sentidos, os verdes caprichosos das ramagens das árvores orquestradas pela aragem e pelas variadas vozes dos pássaros que respondem uns aos outros, em desafio.
Do meu lado esquerdo, eleva-se, cadenciado, um assobio, num tom monocórdico, que se sobrepõe ao dos outros pássaros. Os sons vêm de todo o lado, parecendo convergir, num coral perfeitamente organizado.
É esse coral que me penetra os sentidos, se mistura com os cheiros da Primavera, e me deixa num êxtase de extrema felicidade.
As árvores que se elevam à volta do meu quintal, parecem entreter-se em amena cavaqueira…A expressão corporal desses seres tranquilos, é verdadeiramente peculiar.
Os ramos das tílias dos quintais vizinhos parecem animados de vontade própria, segredando sei lá que inconfessáveis segredos, ora assentindo, movimentando-se em sentido vertical, para cima e para baixo, ora de um lado para o outro, horizontalmente, como em desacordo com o que se lhe propõe …Agora calaram-se as tílias, e são os ramos das árvores mais pequenas que tomam parte na conversa, e defendem as suas posições, atentamente ouvidas pelas mais velhas.
De entre os vários tons de verde do meu jardim, destacam-se as enormes pinceladas de cor das azáleas brancas, rosa-fúcsia, salmão. A cameleira, que os cuidados do “jardineiro de serviço” mantêm anã, brinda-nos com as suas camélias de um vermelho escuro.
Um grande bando de pardais larga as ramadas onde se encontra, e risca os ares, numa estrepitosa algazarra, afastando-se em grupos para de novo se voltarem a encontrar, num jogo que me faz lembrar a apanhada da minha meninice…
São tão tagarelas os pássaros…Cada um na sua conversa diferenciada, respondendo, quem sabe se altercando. Que pena eu não saber distinguir a voz de cada ave!
Já fui dar uma volta aos ninhos que ficaram do ano passado. Mas ainda estão vazios…Este ano, com a morte da cadela, as andorinhas estarão mais tranquilas, sem precisão de andarem com o coração sobressaltado.

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Coisa estranha…Voltei aos ninhos, e este ano não foram ocupados… logo agora, que a ausência da cadela lhes permitiria estarem à vontade…Será em sinal de luto, pelo bicho que os acolhia com latidos de alegria, e, que eu saiba, nunca lhes fez mal?
Uma coisa é certa: o local que ela escolheu para morrer, foi junto dos ninhos vazios…Por vezes eu deparava, cheia de mágoa, com alguns passaritos mortos, ainda sem penas, caídos do ninho…A Daisy sempre “respeitou” os frágeis cadáveres e nunca me apercebi que ela tentasse, sequer, alcançar o ninho que todos os anos aí construía um casal de pardais…E, se os pardais aí continuavam a construir, ano após ano, era porque se sentiam seguros, uma vez que, não sendo o local muito alto, bem podia ser alcançado pelos saltos desta cadela ou pelas suas manhas, que ela tão bem pôs à prova durante os anos em que viveu connosco.

2 comentários:

  1. Continua assim minha mãe! Gostei, e espero que este blog te complete. Um beijo enorme,

    João

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  2. Obrigada.Também o espero.XI-coração

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