Na minha mente cruzam-se excertos de narrativas de
infância que se enredam e enovelam umas nas outras, e me assaltam
constantemente, tantas vezes às horas e nas situações mais indiscretas. Vou
adiando o confronto, por uma tendência inata para a procrastinação, uma preguiça
que se vai instalando, e à qual não tenho forças para resistir. Quando
finalmente cedo ao apelo e me sento para escrever, é porque uma dessas vozes se
sobrepôs, e sei que me basta puxar o fio desse novelinho para a narrativa se ir
desensarilhando… A voz que agora sobrevém das brumas da memória é a da minha
tia-avó materna, que vivia connosco, terna figura indissociável da minha
infância, que disseminou o meu mundo e o dos meus irmãos, de narrativas e de
sonhos… Ouço a sua voz, contando a fábula da cotovia e do sapo. Nunca encontrei
esta fábula em nenhum livro, e nunca a ouvi contar a ninguém. Nem sei se a
reconheceria escrita, ou até narrada por outrem, de tal maneira a voz da minha
tia, imitando e mimando as personagens se tornou parte integrante do corpo da
história, sem a qual ela estará, para mim, mutilada.
— Ó tia,
conte lá a do sapo e da cotovia! — pedíamos
— Era uma
vez um gato-montês…Queres que te conte outra vez?
— Oh! Não!
A do sapo e da cotovia! Vá lá!
Era uma vez um
sapo e uma cotovia. Eram casados, e um dia foram fazer um passeio. Mas foram
apanhados por uma tempestade, que durou três dias e tiveram que ficar abrigados
numa árvore. (A voz dramática da tia, os seus gestos, os seus olhares,
criavam o ambiente indispensável à
visualização da história) Finalmente a
tempestade parou e eles resolveram voltar para casa. Tinha chovido muito, os
campos estavam alagados, as ribeiras e os riachos levavam muita água. E lá vão
os dois, o sapo ( e aqui a voz da minha tia, ao pronunciar a palavra “sapo”
faz a voz grossa, enche as bochechas de ar, e sopra as sílabas “ sa-po”, ao
mesmo tempo que baloiça o corpo com a sílaba “sa-” para a esquerda, e com a
“-po “ para a direita. Afasta os braços, e faz com eles uma roda larga à volta
do seu corpo. Sem mais explicações, a personagem estava instalada à nossa
frente, que víamos um sapo gordo, pesado, bonacheirão…) e a cotovia ( neste ponto
afina a voz como uma flauta, e dá pulinhos na cadeira. É uma cotovia leve e
saltitante que os nossos olhos veem. E estes gestos irão acompanhar toda a
narrativa, alternando-os à media que intervêm uma ou outra personagem.) Chegam à beira do riacho que têm que
atravessar, porque a casa deles é do outro lado. Mas o riacho, que quando passaram
para cá tinha pouca água, agora vai cheio. A cotovia, sempre a saltitar, a
saltitar, levanta voo, e, num instante, está do outro lado. Mas o sapo… olha
para a água, olha para lá do riacho, e não se decide a passar. A cotovia, do
lado de lá, começa a encorajar o homem dela.
— Passa, sapo, passa!
E a voz aflautada da minha tia que imita a cotovia, com os gestos
respetivos, e os pulinhos na cadeira, recriam a narrativa.
— Num posso! Num posso! — responde o sapo.
A cotovia
começa a voar em redor do sapo, ora voando para lá, ora vindo colocar-se ao
lado do seu companheiro.
— Passa, sapo,
passa!
Bem, estão
nisto algum tempo, passa, passa, num posso, num posso, até que o sapo, com
todas as cautelas, lá se decide. Mas com tanto azar, que quando mete a pata,
ela lhe escorrega, e ele vira-se, ficando de patas para o ar a estrebuchar no
meio da água. E a corrente arrasta-o pelo riacho abaixo. A cotovia, ao ver
aquilo, desabafa, aflita e chorosa:
— Ai sapo, que
fico viúva!
Resposta do
sapo:
— E dum belo
rapaz, tocador de viola!
Ao ouvirmos esta história não conseguíamos conter as
gargalhadas, e a pena que a sorte do pobre sapo nos pudesse despertar, era
desviada pela imagem patética que conseguíamos visualizar, do sapo gordo de
patas no ar, a responder ao choro da cotovia, com a voz soprada, grossa e compassada,
que a tia lhe emprestava.
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