A história que vos vou contar aconteceu mesmo.
Aconteceu comigo, era eu um rapazito, acabadinho de fazer exame, e com
distinção, se quereis saber. Nunca a contei a ninguém a não ser à minha mãe que
Deus tem. E foi ela quem me aconselhou a manter o bico calado. Durante estes
anos todos esta história coabitou comigo, e marcou a minha vida. Procurei
esquecê-la, afogá-la no fundo da memória, mas parece que quanto mais me
esforçava para a esquecer, mais ela procurava um escape, e parecia crescer como
massa que se põe a levedar. Muitas foram as noites em que estas recordações
assombraram o meu sono, e os pesadelos que me assaltavam, aterrorizaram a minha
juventude. Quando deixei de lutar contra as memórias, também as minhas noites
serenaram, e deixei de ter medo que eles viessem atrás de mim. Se tivessem essa
intenção, tê-lo-iam feito logo, enquanto eu era pequeno, sem ninguém que me
defendesse, mas nunca me aborreceram nem falaram no assunto. Sabiam,
certamente, que o terror de alguma represália me manteria calado. Já passaram
muitos anos. De todos os que participaram nesta história só eu estou vivo…Já
não há perigo, nem para mim, nem para eles. Todos eles já prestaram contas ao
Criador, e alguns deles, senão todos, Deus me perdoe, estarão a arder nas
profundezas do inferno. Calma, não me apressem, eu sei que já não corro perigo,
mas ainda sinto um arrepio na espinha, ao lembrar-me…Sei bem que não há motivos
para isso, mas…foram muitos anos, a guardar este segredo. E se hoje me atrevo a
desvendá-lo, foi porque andei muito tempo a matutar nisso…a convencer-me, a
ganhar coragem…Não, não estou a exagerar, acreditem no que vos digo…E, apesar
dos anos, não me esqueci de nenhum pormenor. Parece que, quanto mais o tempo
passa, mais eles se avivam na minha memória.
O velho pegou no copo de vinho, olhou em volta, e
emborcou-o de uma só vez. O som do líquido a escorrer pela goela, enquanto a maçã-de-adão
subia e descia, era o único som que se ouvia. Sobre a mesa redonda, as garrafas
de vinho, algumas já vazias, os copos tingidos de roxo, a assadeira de barro
onde ainda ardia o baraço da chouriça, a broa de milho já no fim, eram fracamente
alumiados pela luz bruxuleante do candeeiro de petróleo. O fumo dos cigarros
serpenteava em volutas caprichosas. As sombras iam crescendo como um balão que
se enche, ocupavam todos os recantos da loja, agigantavam-se ao redor dos
quatro homens. O professor, o Joaquim da venda e o Leonel boticário não
despregavam os olhos do velho Mateus.Com aquela introdução Mateus havia
conseguido captar a atenção de todos eles. Todas as quartas-feiras eles se
juntavam na loja do Joaquim, depois do expediente, para contarem as suas
histórias ou debaterem algum tema de interesse. Joaquim fechava a porta da
mercearia mal o sino da torre batia as sete badaladas, e eles ajeitavam-se para
ali passarem o serão. As mulheres sabiam que naquele dia escusavam de esperar
os maridos para jantar. Só a Mateus ninguém o esperava. Era o único idoso e o
único que nunca casara, muito embora se lhe conhecessem algumas inclinações
amorosas nunca assumidas nem por ele, nem por elas. Nesta quarta-feira, era a sua
vez de iniciar a reunião contando uma história.
Na braseira enlanguesciam as brasas, que o professor
ia atiçando nervosamente.
Mateus continuava: Pois quando fiz o exame, a minha
saudosa mãe foi pedir ao almocreve Pero Piçarro, para me levar com ele e o seu
bando, para eu ir aprendendo o ofício. Os almocreves naquele tempo ganhavam
muito dinheiro, e, se bem que estivessem sempre sujeitos a assaltos dos amigos
do alheio, a fama e a experiência que Piçarro havia consolidado, deixavam a
minha mãe tranquila. E num dia combinado, eu lá parti com a caravana deles. Os
homens iam todos montados nas suas mulas e machos, e dos alforges de couro ensebado
sobressaiam as coronhas das espingardas. Nem parecia que partiam por quase um
mês, tal era a boa-disposição que os animava. Contavam graçolas, cantavam,
riam-se. Eu ia sentado na carroça das mercadorias, amuado e envergonhado por me
terem visto agarrado à minha mãe, soluçando desalmadamente, perante a
perspetiva da separação. Nunca a tinha deixado, e ela sempre me acarinhou, quem
sabe se também para me compensar da falta de pai, que, como sabem, não conheci.
Um deles, o Zé Manco, meteu-se comigo por eu ir choroso e abatido como uma
menina, e eu ia ressentido com ele… Mas lá íamos progredindo vagarosamente
pelas estreitas veredas, o corpo sujeito aos solavancos que os acidentes do
caminho comandavam. Estávamos quase a chegar à Malhada das Vacas, quando me
apercebi que eles se tinham calado. Espreitei, e vi que tinham parado, e tirado
os chapéus. Parecia que estavam a rezar. E não é que estavam mesmo? Dois ou
três minutos depois, benzeram-se, puseram os chapéus, levantaram a cabeça, e
retomaram o caminho. E o que eu percebi, é que estavam zangados…Um deles, de
quem já me esqueci do nome, falava muito alto, e dizia que o havia de varar com
dois tiros no meio dos cornos, como ele tinha feito ao Almiro Pardo, e ela
havia de ter a mesma sorte…Só mais tarde percebi de quem falavam, quando contei
à minha mãe e ela me convenceu a ficar calado para o resto da minha vida. Já
vai, já vai…não tenham pressa, já lá chego…
O Pero Piçarro, que era o chefe do grupo, censurou-o,
disse-lhe que tivesse calma, que ele fervia em pouca água, que a vingança era
um prato que se servia frio…
Andámos aí uns cem metros, quando o Ramires
Murtinheira, que mal tinha falado, disse:
— Pois então,
Piçarro, espero que o prato esteja bem frio, porque o alarve está a caminhar
para as tuas mãos.
No caminho de baixo avistava-se um cavaleiro.
Obrigatoriamente, ele tinha que passar pelo mesmo caminho que seguíamos.
— Aí está a resposta às minhas orações — murmurou o
que chamavam de Padre.
Imediatamente os homens saltaram das montadas,
conduziram os animais e a carroça para fora do caminho, e pegaram nas armas.
Agacharam-se atrás das moitas, e esperaram, silenciosamente. Não tardou muito
que se não aproximasse uma mula ruça, em cima da qual se sustinha um homem que
eu conhecia, mas de quem não sabia o nome. Avançavam lentamente. O homem,
grande e pesado, com o chapéu descaído para os olhos, parecia dormitar; a mula,
derreada sob aquele peso exagerado parecia ainda mais velha, e, tanto montada
como cavaleiro, vinham cobertos de pó e aparentavam um grande cansaço. Mal ele
chegou perto, os meus companheiros saíram dos esconderijos, e apareceram-lhe à
frente, de espingardas apontadas.
— Lembras-te do que fizeste aqui ao Almiro Pardo?— perguntou
o Pero Piçarro.
O homem teve um sobressalto, e agilmente lançou mão
da sua arma, com uma destreza imprevisível para alguém com aquela compleição anafada.
— Eu se fosse a ti, nem sequer tentava. Já contaste as
armas que tens apontadas às trombas?
Nunca me esqueci do ar apavorado que cobriu o homem!
Tenho a certeza que ele soube que ia morrer.
— Lembras-te, ou já te esqueceste?
— Lem…lembro…
— E tens
alguma coisa a dizer em tua defesa?
— Eu…ele…ele batia-lhe, e…
— E se batia, era lá com ele…entre marido e mulher
não metas a colher! — interrompeu o Laginha.
— Se é só isso
que tens a dizer, faz as tuas orações…Embora
tenha a certeza de que te não vão servir para nada…há de ser o mafarrico quem
vai tratar da tua alma, se a tiveres — avisou o Padre.
Estas observações foram recebidas com gargalhadas por
todos, exceto pelo cavaleiro, que estava pálido, e tremia. Na poeira das calças
começou a alastrar uma mancha escura.
Eu estava aterrado, escondido atrás da moita, mas sem
conseguir desviar o olhar. O bando parecia ter-se esquecido da minha presença. Lembro-me
de que comecei a rezar, eu também. De repente, uma metralhada de tiros fere os
ares, quase em uníssono. Fechei os olhos com força, e cravei as unhas nas
palmas das mãos. Ouço então um baque surdo, pesado, como se um saco de batatas
escorregasse até ao chão, ao mesmo tempo que me entra pelas narinas o cheiro a
pólvora misturado com poeira. Logo a seguir, a voz de Zé Manco, à qual se
associam as gargalhadas dos companheiros:
— O bicho não
estava mau!
É neste momento que eu desato a correr, a correr, a
correr, e só paro em casa.
Mateus parece despertar. A história que acabou de
narrar deixou-o sem forças. Contou quase como se estivesse sozinho, sem fitar
os seus ouvintes. Só agora volta a passear o olhar pelos companheiros, que não
se atrevem a falar.
Quando cheguei a casa, eu quase desmaiava de pavor e
exaustão. Depois de beber um beirito de água que a minha mãe colocou à minha
frente, e me ter acalmado, contei-lhe aquilo a que assistira. Notei que ela
ficou muito aflita e pediu-me que esquecesse aquela história. Devia fazer de
conta que nunca tinha acontecido, e que desconhecia completamente aquele
assunto. Pois foi isso que eu fiz, professor, até agora. Mas antes eu quis
saber quem era o tal Almiro Pardo. Lembro-me que a minha mãe ficou perturbada,
respirou fundo, e explicou-me que esse Almiro fazia parte do grupo dos
almocreves do Pero Piçarro. Fora assassinado perto da Malhada, e constava que o
Abel da Várzea o tinha matado para lhe ficar com a mulher, mas não havia
provas. Pois dizes bem, Joaquim, foi um ajuste contas! Qual quê ! O corpo nunca
foi encontrado, e eles trataram de espalhar o boato de que ele teria fugido
para o Brasil! Eu ia lá abrir a boca, professor! Quem tem cu tem medo! A minha
santa mãe fez-me jurar, pela bíblia sagrada, que nunca diria nada! E o
prometido é devido.
— Pois então, bebamos mais um copo! — propôs o
Joaquim.
O vinho rodou pelos copos de todos. A voz de Mateus continuou ainda a ressoar depois de se ter calado.No ar sentia-se
um ambiente pesado, como se a evocação daquela história tivesse convocado as almas dos seus intervenientes. E
nessa noite, depois da rodada,os quatro companheiros da venda foram desertando, sem quererem saber de mais
conversa.
Se me fosse dado classificar este conto dava-lhe 20 valores.
ResponderEliminarBem estruturado, preciso e mantendo o leitos numa crescente expectativa.
Obrigado pela sua visita e, pela oportunidade, de ler esta magnifica estoria.
Obrigada, Manuel, é muita gentileza sua. Passei pelo seu cantinho, como é meu costume,embora nem sempre deixe vestígios da minha passagem.Leio sempre o que escreve com muito prazer.
ResponderEliminarConto muito interessante, consegue recriar o ambiente e manter o leitor curioso e atento ao desenlace...
ResponderEliminarAinda bem que te interessou.beijo
ResponderEliminarMuito bom, é tudo fruto da tua imagiação?Prendeu-me até ao fim :D
ResponderEliminarBarbara, a história final é o resultado de relatos que ia ouvindo em pequena, aos quais se juntam cenas que são produto exclusivo da minha imaginação. Penso que é assim que nascem todas as histórias ...Ainda bem que a narrativa te prendeu até ao fim.
ResponderEliminarÉ mesmo "incrível" como a junção da nossa infância e da nossa imaginação (que é a nossa maior "arma" nessa altura), nos leva tão longe. Mas não é para todos, é preciso "saber relatar" o que imaginamos, em forma de história :D
EliminarÉs uma querida!Obrigada!
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