Pois olhai, eu cá, tenho muito respeitinho por
essas coisas…Deixá-los lá estar sossegadinhos…Ná…Eu bem sei o que aconteceu
aqui há uns anos, ainda era eu um rapazola … qualquer um dos rapazes está aí,
que não me deixam mentir…eu seja ceguinho destes dois…Quereis saber?
Uma ocasião, eu e mais uma malta combinámos ir
fazer um magusto. Tinha que ser num domingo, pois embora fôssemos todos
solteiros, já trabalhávamos, e no duro, desde que deixáramos a escola. Todos
nos lanifícios, ou na metalúrgica. Só o Zé Garrincha trabalhava com o pai, na
arte de alfaiate. Era o único que conservava as mãos limpas, todo pimpão, sem
ter que usar o fato-macaco. Mas o pior era conseguirmos num domingo, dispensa
do namoro, pois a maioria de nós também já catrapiscava a sua pequena, e, está
claro, não era fácil que, exatamente no dia em que costumávamos namorar, falhássemos
ao encontro só para estarmos uns com os outros. Mas era o que nós queríamos: um
dia só de rapaziada. Fizemos planos durante bastante tempo, e cada um lá
resolveu o problema à sua maneira. Só o Zé Teimas, coitado, é que não conseguiu
livrar-se do controlo da sua velha mãe, que o trazia debaixo de olho como se
ele fosse um catraio e o André da Moleira não arranjou quem quisesse trocar com
ele o turno na metalúrgica.
E chegou o domingo tão esperado. A escolha do
local recaiu no Gemuro, além onde se ergue a capela da nossa Senhora da Guia. A
nossa esperança era que não houvesse por lá muita gente, nem na capela, nem no
cemitério. Queríamos paz e sossego, longe dos olhares curiosos. Por isso, em
vez de sairmos todos juntos do povo, fomos chegando, a pouco e pouco, para não
dar nas vistas. Pouco depois do almoço lá nos fomos escapando de casa, e por
volta das 3 horas da tarde já lá estávamos os seis. Depois de juntarmos o que
havíamos surripiado de casa, logo demos conta de que a comida era mais do que a
que conseguiríamos comer. Mas estávamos decididos a ficar por ali até nos
apetecer, e só ao fim da tarde contávamos regressar a casa. Tínhamos castanhas,
dois garrafões de jeropiga, duas mantas, e o resultado do assalto clandestino às
despensas e salgadeiras das nossas casas: as fêveras eram poucas, mas havia chouriças
e bons nacos de toucinho e presunto, que era o que mais apreciávamos. Encarámo-nos
felizes, e despreocupados. O Tó Figas trazia com ele a concertina e o realejo.
Quando puxei do meu cavaquinho, o Chico da Santa logo lembrou que, antes da
música, havia que tratar da fogueira. Era preciso acartar a caruma, e umas pinhas
para atiçar o lume. E foi o que fizemos. Começámos a descer o monte, na
galhofa.
— Ó Chico, tu gostas mesmo de mandar! Já meteste
a Ilda na ordem? — perguntou, provocador, o Edmundo.
— Isso não é da tua conta, e a llda não é para
aqui chamada! — vociferou, enraivecido, o Chico, enquanto dava dois passos
ameaçadores em direção ao Edmundo.
— Então não combinámos que era um domingo só
nosso? Se começamos a falar das conversadas, lá se vai a satisfação — conciliou
o Tó Figas.…
— Oh! Oh! O caso é sério! A mim não se me dá de
falar na minha Francisca! — atalhou o Zé
Garrincha..
— Tratos são tratos. Acabou-se! — insistiu de mau
humor, o Chico da Santa.
Eu tratei de deitar água na fervura.
— Pronto, homem, não te enxofres! Não se fala de
negócio de mulheres, acabou-se!
— Mas, então de que havemos nós de falar? —
insistiu o Periquita.
Enquanto se estava nesta conversa, fomos
amontoando a caruma e as pinhas nas mantas, que depois transportámos para o
terreiro.
Acendemos a fogueira, tratámos das brasas,
assámos as castanhas, as chouriças, as fêveras, e os garrafões foram passando
de boca em boca. Cantámos, tocámos, contámos anedotas, falámos do nosso
trabalho, e acabámos até por falar no assunto proibido. Depois de bem bebido, o
Chico nem se importou, e tomou parte na conversa como os outros. Foi uma
animação, e uma tarde bem passada. Teria sido perfeita, se não fosse o que veio
a seguir…O Almiro da Volta estava já bastante tocado. O rapaz não aguentava a
pinga. Era fraquito, nem a pinga, nem os cigarros…e a cabeça…Bom, adiante!...Chegou-se
a hora de recolher, e nem queiram saber o que aconteceu. Tinha crescido muita
comida…A fogueira ainda deitava fumo, e as castanhas que restaram estavam que
nem tições. Mas havia ainda restos de chouriças e alguns nacos de toucinho.
Começava a escurecer.
— Que se faz a esta comida?— perguntei — Alguém a
quer levar?
— Eu não! Então vou levar as provas do assalto à
salgadeira para casa? — recusou o Almiro.
— Eu também não!
— Nem eu!
O Tó Figas não disse nada, mas balançou a cabeça da
esquerda para a direita.
— Bom! — concluiu o Zé Garrincha — Então fica cá
o resto para aqueles que estão lá em cima!
Ao dizer isto, o Garrincha rodou o queixo
apontando-o para o alto da colina onde se situava o cemitério .
Nessa altura ouviu-se um enorme estrondo. Com
fragor, as portas de ferro do cemitério abriram-se de par em par. Ao mesmo
tempo levantou-se um vento forte, a uivar e a enrolar dentro de um enorme
remoinho tudo que encontrava à sua passagem. Sei que me agarrei ao tronco de
uma árvore, para não ser sugado por aquela tromba de vento. A mesma sorte não
teve o Zé. Vi-o ser engolido por uma girândola de ar e vento, e ser cuspido, ao
cabo do que me pareceu uma eternidade, pela encosta do monte que conduzia ao
povo. De dentro do cemitério, um cortejo de vultos negros, com capuzes bicudos,
descia pelo monte abaixo, na nossa direção. Nem queirais saber: eu estava
petrificado, sem me conseguir mexer. De súbito, senti uma incrível energia, e
comecei a correr em direção ao local por onde o Zé fora atirado. Senti os meus
companheiros a correrem atrás de mim, aos gritos. Todos nós rebolámos pela
encosta, só parando numa zona em que o chão se aplanava. Olhámos uns para os
outros, incrédulos e aterrados. O vento tinha amainado. Levantámo-nos, e
continuámos a correr. Só parámos perto do povoado. Combinámos não contar nada,
até nos voltarmos a juntar e pensarmos melhor no assunto. O Periquita desde
sempre disse que não se lembrava de nada. O Almiro, como sabem, acabou por dar
em...cá para mim… ele nunca foi muito forte do miolo… não aguentou, e… ficou
pírulas…Os outros nunca quiseram falar no assunto. Não é nada que eu ande por
aí a contar a qualquer um, mas… o que eu vos digo é que os mortos não gostam de
ser importunados, ai isso é verdade verdadinha, tão certo como eu estar agora
aqui …
Que maravilha! Deliciosa a forma como nos leva enleados no jogo das palavras, nas emoções e na delicadeza dos mistérios da vida.
ResponderEliminarObrigada!
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