Já há algum tempo que eu estava naquele antiquário morrendo de tédio.
Num domingo à tarde, um casal entrou na loja, e foi percorrendo com o
olhar as diversas antiguidades, velharias e quinquilharias.
A mulher deteve-se em frente da prateleira onde eu estava exposto.
Olhou-me demoradamente, e eu senti um frémito de prazer percorrendo-me o corpo.
A atração foi mútua, pensei eu. Mas depressa os seus olhos se desligaram de mim
e passearam por outros objetos da loja. Senti-me desiludido.
Algum tempo depois, a mulher voltou. O dono acudiu:
__É uma caixinha de música, sabia?
__ A sério?!
__Sim. Quer ouvir?
O dono pegou-me, e rodou o círculo onde os quatro cavalinhos de madeira
estavam implantados. Dentro de mim soltou-se a música de embalar, enchendo o
espaço de estrelas e encantamento.
__É isto mesmo que eu quero! Rui, olha, para o Afonso!
__ Mas para quê?
__ Para ele adormecer… para se acalmar, quando…percebes?
Aquelas palavras eivadas de mistério e ansiedade aguçaram a minha
curiosidade. Antes de dar ordem para me embrulhar, as mãos da mulher afagaram
gentilmente o meu corpo, desde o pináculo, os rebordos, passando pelos
cavalinhos, pelo círculo branco que girava e comandava a música, até à base de
madeira pintada de vermelho.
Não tardei a perceber. Mal chegaram a casa, a mulher correu a colocar-me
num quartinho infantil, numa estante de onde convergiam duas caminhas dispostas
em L. Nessa noite eu assisti ao ritual. Duas crianças em pijama entraram no
quarto, riram, brincaram, saltaram sobre os colchões. A mãe, a mulher que me
comprara, veio, contou-lhes uma história, aconchegou-os. Rodou o manípulo, os cavalos
giraram, e a música desprendeu-se. A menina adormeceu quase instantaneamente.
O rapazinho soergueu a cabeça, e disse:
__Que lindo, mamã!
__Vá, dorme! __ cochichou a mãe, assentando um último beijo na testa do
menino.
Apagou a luz, e deixou a porta do quarto entreaberta, permitindo que, do
corredor, uma ténue faixa de claridade se projetasse no tapete do quarto.
Mas o rapazinho não adormecia. Constantemente chamava a mãe. A mãe
chegava, rodava o meu manípulo, e a música soltava-se. O menino acalmava-se
durante alguns instantes, a mãe saía, e tudo voltava ao mesmo. Finalmente
adormeceu. Tudo ficou em silêncio. Eu também adormeci.
Fui acordado por uns gritos lancinantes a romperem a noite.
O rapaz gritava, aterrorizado, clamando pela mãe. Ela irrompeu pelo
quarto, pegou no filho ao colo.
A criança tinha os olhos abertos, mas fixos, parecendo não ver. A mãe
abraçava-o, proferindo palavras de conforto que não logravam romper o muro que os
separava.
__ Acalma-te, meu filho, acalma-te! A mamã está aqui! A mamã está aqui!
Mas a criança continuava a berrar, encerrado no seu terror, percorrendo,
solitário, a escuridão. A mãe chorava, impotente e em pânico.
Logo a seguir entrou no quarto o homem. Envolveu no seu abraço a mulher e
o filho, sussurrando:
__Sssssshhhhh! Sssssssshhhhh!
De repente o homem saltou em direção à estante, pegou-me, fez girar o meu
mecanismo, e a música fez-se ouvir. Pouco a pouco a criança foi-se acalmando, e
acabou por adormecer. Eu ouvia o choro silencioso da mãe e pressentia a sua
angústia e desespero. O homem saiu do quarto e a mãe ficou, culpabilizando-se,
talvez, por não conseguir que a sua voz chegasse ao interior do seu menino. Quando
a música parou, a mulher fê-la voltar ao início. Esta foi a primeira noite em
casa desta família. Foi, talvez, a mais dura de todas. Aquela que me fez
perceber a esperança que aquela mulher depositou em mim, quando me viu, pela
primeira vez, no antiquário. Muitas outras noites se seguiram. Todas as noites
eu trabalhava. De vez em quando repetiam-se estes episódios de terror. No dia a
seguir a estas ocorrências, o menino acordava cansado, mas não se lembrava de
nada. Eu fui percebendo a importância da minha música para aquela criança, mas,
sobretudo, para a mãe. O Afonso cresceu. Os terrores noturnos foram reduzindo
de frequência e intensidade, até acabarem definitivamente. E eu fui atirado,
pelas mãos do rapaz, para o fundo de um caixote, na companhia de alguns peluches,
spiderman´s , e tartarugas Ninja.
Durante alguns anos estive adormecido no sótão. Até que…
Um dia a tampa da caixa onde estava guardado levantou-se, e uma réstia de
luz acordou-me. Ouvi uma exclamação de espanto. Era ela. Pegou-me com carinho,
fez girar o meu manípulo, e a minha música ecoou naquele exíguo espaço.
Desde esse dia, tenho tido lugar de destaque entre as coisas de que ela
mais gosta: os seus livros, e outros objetos de estimação. Até já fui estrela
numa peça de teatro em que ela entrou, onde fui ovacionado de pé por uma casa
cheia. Voltei a sentir-me importante. Todos os dias sou acariciado pelo seu
olhar. E continuo, até hoje, a acalmá-la com a minha música, e, às vezes até, a
inspirá-la.
Sinto-me amado.
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