Naquela aldeia encaixada nas montanhas, só viviam
pessoas idosas, viradas para si mesmas, dentro das suas casas tristes, onde,
muitas vezes, nem a luz do sol deixavam entrar. Viviam entregues às saudades da
juventude, e, pouco a pouco, foram deixando murchar os sonhos que em tempos
moraram dentro delas. Até já se tinham esquecido de quando as varandas estavam
repletas de flores, e as melodias que lhes nasciam na alma, irrompiam pelas
gargantas e enchiam os campos de sons harmoniosos que ficavam a pairar no ar.
Nesse tempo, quando uma cantiga se escapava por uma
porta ou uma janela, logo outra respondia do outro lado da aldeia. E outra do
outro canto, e do outro, e do outro…
E quando andavam na labuta nos campos, era a mesma
coisa. A atmosfera ficava prenhe da música dos pássaros e das cantigas que os
camponeses cantavam ao desafio.
Havia jovens e crianças na aldeia, nesse tempo.
Depois da escola as crianças corriam para a ribeira, para pescarem e nadarem.
Os mais velhos tomavam conta dos mais novos, e ensinavam-nos a nadar, a
escolher o melhor isco para as trutas, as bogas, os achigãs…
Nas longas tardes de verão, sentados ao sereno, sob a
luz das estrelas e do luar, ouviam-se histórias acompanhadas com música, que os
mais novos escutavam com atenção e religiosidade. No inverno, era ao calor da
lareira que os pequeninos adormeciam, embalados pelas histórias dos avós. Assim
aprendiam a interpretar os ciclos da vida, a escutar o palpitar da Natureza, a
amarem-na, a respeitarem-na. Era uma aldeia feliz…
Mas as crianças cresceram e partiram, levando os seus
sonhos na bagagem. A escola fechou, as ervas tomaram conta dos recreios e
invadiram as salas de aula. Os campos ficaram ao abandono. Sem alma, muitas
casas ameaçavam ruir de solidão e esquecimento. Os pais dessas crianças eram
agora os idosos da aldeia. Passavam o dia inteiro lamuriando-se. Já não queriam
saber de nada. Viviam dentro das casas, trancados nos seus problemas. Nem mesmo
os que ainda podiam caminhar, se atreviam a ir à rua. Arrastavam-se de ombros
descaídos, olhos postos no chão. Não ouviam os pássaros, nem o silêncio da noite, e tinham esquecido o
gesto de levantar a cabeça para olhar as estrelas…Muitos tinham emudecido, à
força de não usarem as palavras para se expressarem… Estavam a deixar-se
morrer. Tinham perdido os sonhos.
Um dia um jovem chegou à aldeia. Trazia estrelas nos
olhos e sonhos na voz. E uma concertina. Chegou ao adro da igreja, sentou-se no
meio do chão, com as pernas cruzadas e começou a tocar, com alma e entusiasmo.
Tocou, tocou, tocou, tocou… Nas janelas, algumas cortinas curiosas
levantaram-se cautelosamente, mas ninguém apareceu no adro. Ao fim de uma hora,
o jovem partiu, e no ar ficou o eco das músicas que os idosos identificaram,
depois de procurarem nos escaninhos da memória.
Naquela noite, muitos adormeceram com uma grande
nostalgia no coração. A nostalgia da felicidade.
Eram quase três horas da tarde quando, no dia
seguinte, a acalmia foi interrompida pela concertina do jovem. Ele tinha
voltado. Agora caminhava por todas as ruas e vielas, tocando a sua concertina.
Com um reportório renovado. E, ao fim de uma hora, partiu. Em todas as casas se
gerou agora um sobressalto: que fazia ali aquele rapaz? Que queria ele? Tocava
tão bem!
Muitos recordavam os dotes musicais que tinham
deixado cair no esquecimento. Houve quem tivesse ido procurar os instrumentos
que havia tocado em jovem, e experimentado a firmeza dos dedos agora rígidos,
ou tivesse levado à boca os instrumentos de sopro…Houve quem tivesse começado a
trautear timidamente as cantigas que entoara em tempos…Houve quem pensasse que
não estava para cantigas…Houve que sentisse um estremecimento na alma…Houve
quem chorasse de emoção…Mas as portas continuaram fechadas.
Porém, em todas elas, a expetativa ia tomando conta
dos habitantes: voltaria o jovem no dia seguinte?
Naquela noite, houve quem não conseguisse dormir…
Perto das 3
horas da tarde, adejavam cortinas impacientes por detrás das janelas das casas
que circundavam o adro. Nas outras, colocavam-se os ouvidos de atalaia, e descerravam-se
as janelas… Já passavam 10 minutos das 15 horas quando a música da concertina
do jovem o fez anunciar, antes da sua figura desembocar no adro. Um suspiro de
alívio de que só os próprios se aperceberam, soltou-se em uníssono dos peitos
expectantes. De repente, uma porta abriu-se, soltando um dolente queixume. E os
passos trémulos do ti Albano encaminharam-se para o meio do terreiro, onde
estava o jovem. O ti Albano encostou o violino ao pescoço, rapou do arco, e começou
a acompanhar a música que o jovem tocava. Os olhos do bom do velho estavam
húmidos. Não foram precisas palavras para os dois se entenderem. Já tocavam há
meia hora, quando a velha professora se aproximou timidamente com o seu
cavaquinho. E as duas irmãs que moravam no fundo da aldeia, vieram com as suas
vozes trémulas, mas ainda bonitas, acompanhar os músicos. E, já mesmo quase na
altura do jovem partir, também os velhos da casa amarela se juntaram ao coro. Passou
uma hora e o jovem partiu, sem uma palavra, deixando os idosos que se
aventuraram a furar a solidão forçada, cheios de perguntas. Envergonhados,
regressaram aos seus refúgios.
Naquela aldeia, algo estava a acontecer. Houve
janelas que se abriram e deixaram o sol penetrar pelas casas. Houve quem viesse
sentar-se na soleira da porta, à noite.
No dia seguinte, quase todas as janelas se abriram, e
houve vizinhos que se saudaram. Havia sonhos a irromperem nas almas
abandonadas.
À hora habitual todos estavam preparados para
receberem a música nos seus corações. Mas o jovem não veio. Nem no outro dia,
nem no outro, nem no seguinte. Houve quem chorasse de raiva, de desilusão.
Houve quem caísse à cama, sem coragem para se levantar. Houve quem dissesse que
já sabia que aquilo ia acontecer. Os aldeões sentiam-se traídos, sem saberem
explicar a si mesmos porquê, já que nada lhes fora prometido. Estavam agora
mais sós do que nunca.
Mas quando já o desespero corroía a esperança,
eis que soa a música da concertina. Desta vez, como se obedecendo a um sinal combinado, as portas abriram-se, e as pessoas saíram alegres para a rua. Poucas
foram as que ficaram em casa. Só mesmo as que não puderam arrastar-se.
Hoje, passados que são dois anos sobre o aparecimento
do Xico na aldeia, custa a acreditar que aquela banda de rock da terceira idade
que toda a gente conhece, e que já ganhou alguns prémios, seja formada pelos
habitantes daquela aldeia que só estavam à espera de morrer. Os milagres
acontecem, se não perdermos a capacidade de sonhar.
Sem comentários:
Enviar um comentário