Esta fotografia salvou-me. Salvou-me, e assegurou ao
Titó um lugar de destaque entre os fotógrafos nacionais, ao ganhar o concurso
para que se candidatara. Lembro-me muito bem do dia em que foi tirada. Eu não teria
mais de cinco anos, e foi o Titó, o filho da tia Marta, que a captou com uma
caixa que colocou à frente da barriga, enquanto dizia: olha o passarinho! À caixa ele chamou Kodak. Com os dedos, penteou-me
a franja de cabelos castanhos, sobranceira aos olhos negros e imensos onde
cabiam todos os sonhos, todas as possibilidades, todas as incógnitas. É uma
fotografia a preto e branco, mas sei que o meu casaco era vermelho. Pertencera à
filha da patroa da minha tia, que não chegara a usá-lo, por ter aumentado de
tamanho mais do que era esperado. A velha bateria onde está encaixado o varal para
prender o cordão da roupa, fora resgatada pelo Zezito Tolo uns dias antes, de
um camião enferrujado e abandonado na lixeira. Nesse dia o pátio estava liberto
de roupa. As mulheres daquela ilha,
tinham partido de manhã cedo para a ribeira com as suas trouxas e ainda não
tinham voltado. Este era um bairro pobre dos subúrbios do Porto. A fotografia
está gasta e amarrotada, tantas vezes olhei para ela, procurando o farol para
resistir às vicissitudes da minha vida. Nunca me separei dela. Eu era uma miúda
tímida, sonhadora, curiosa. Cresci entre os cordões de roupa que se cruzavam
pelo pátio ladeado de casas velhas, degradadas, às quais todos os anos as
chuvas arrancavam mais um bocado de reboco. Ano após ano, as manchas de humidade
iam avançavam mais um pouco, desenhando nas paredes das casas um mapa
irregular, mas de contornos caprichosos. Nem no verão o cheiro bolorento se descolava
das paredes, da roupa, da pele. Alguns vidros das janelas iam sendo
substituídos por pedaços de papelão grosseiramente recortados das caixas de
cartão que pedinchávamos na mercearia. Os telhados eram remendados com chapas
de zinco. Nos cordões, as roupas dos vizinhos, tal como as nossas vidas,
entrelaçavam-se numa teia emaranhada.
Durante muito tempo, o meu mundo confinou-se ao espaço
delimitado pelas casas, e eu sonhava com o dia em que poderia passar para além
daquele pátio. De dia, ao olhar para o retalho do céu por onde voavam as andorinhas,
desejava voar com elas para sair dali. De noite, olhava as estrelas e
acreditava que elas eram habitadas por alguém que colhia os meus sonhos de
liberdade. Não tinha com quem brincar, pois não havia crianças da minha idade.
Os jovens que ali viviam, começavam a trabalhar mal acabavam a instrução primária,
e alguns nem isso, e eu ficava sozinha. Os desenhos caprichosos que a humidade
imprimia nas paredes daquelas casas, alimentavam o meu imaginário. Nessas
manchas de humidade via eu rios, árvores, montanhas, animais, aves, crianças,
homens e mulheres que se animavam nas histórias que eu construía. A minha tia,
que me acolheu quando os meus pais morreram, e que me criou, pouca paciência
tinha para os meus devaneios. Costumava dizer que eu lhe caíra nas mãos quando
ela tinha idade para ser minha avó. Mas criou-me o melhor que soube, e sempre
contou com a solidariedade dos vizinhos. Eram várias as famílias que ali
viviam, com as desavenças, disputas e ciúmes normais, que não raras vezes ultrapassavam
as paredes das casas de cada um e se estendiam pelo pátio comum, tornando de
todos os conflitos, levando uns e outros a tomarem partido por quem lhes
parecia. Havia zangas, ameaças, palavras azedas. Porém, se algum membro daquele
agregado coletivo fosse de alguma maneira molestado por alguém exterior ao pátio,
as causas passavam a ser defendidas com zelo e sangue, se preciso fosse, como
se de uma única família se tratasse.
Olho a fotografia e parece-me impossível que sobre ela
tenham decorrido cinquenta anos! Quantas mágoas…Quantas desilusões...Cantei e
chorei, sofri e fiz sofrer, amei e fui amada, odiei e fui odiada. Vivi no luxo,
viajei, fiz cruzeiros, atravessei o mundo, passaram pelos meus braços mais de
mil homens, mas nenhum ficou. Nem eram para ficar. Não na vida que me escolheu
e que eu decidi seguir. Não sei porque lhe chamam vida fácil. Fácil nunca foi. Cedo
me apercebi que a instrução seria o passaporte que me remiria de uma vida de
miséria, e aprendi a tirar partido do meu corpo, único bem que possuía. Começou
pela necessidade de pagar os estudos na faculdade, e não mais parei. Nos
momentos em que me sentia aviltada, desprezível, conspurcada, recorria a esta
fotografia, fechava os olhos e sentia-me menina outra vez, pura e genuína, com todos
os sonhos ainda por cumprir… Agora acabou. Retirei-me. Ganhei mais do que o
suficiente para viver uma vida um pouco acima da média. Em caso de necessidade,
posso sempre recorrer às minhas joias, às roupas de griffe…e aos direitos autorais do livro que contará a minha vida
obscura e que será publicado em breve.
De vários
lugares no mundo, olhei as estrelas, o céu vasto, observei as andorinhas voando
livremente, mas era sempre àquele hexágono de céu estreito e restrito da minha
infância que eu voltava. Estranho paradoxo! Vendi-me para sair, e tanto desejei
voltar! Mas jamais podemos voltar a banhar-nos nas mesmas águas do rio, não é
assim? Aquele cantinho de casas degradadas que eu guardei no coração, já não
existe. Deu lugar a um imponente imóvel de escritórios moderno, envidraçado. Resta-me
a fotografia.
Poético este conto, julgo que uma estória, que de tão real me deixou agarrado a cada letra, a cada palavra como se vivesse o momento.
ResponderEliminarParabéns.
Encontrei um Blogue para voltar sempre.
Obrigada, Manuel, pela sua visita e pelas palavras elogiosas. É de facto um conto, inspirado por uma fotografia que alguém me mostrou, e que fazia parte de um maço achado no lixo, enfim, um pequeno tesouro.
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