Acordo sobressaltada com os gritos
das crianças. Tateio o interruptor, mas não há luz. Salto da cama. A sombra da
cerejeira agiganta-se, ameaçadora, na parede do meu quarto. Às apalpadelas vou
avançando pelo corredor, tão depressa quanto a escuridão me permite. A
sapateira aparece-me à frente, barra-me o caminho, e eu dobro-me
instintivamente pela cintura, enquanto um grito de dor se me escapa por entre
os lábios. Contorno o móvel e avanço. Os gritos das crianças são mais urgentes,
e denunciam terror. Grito-lhes, tentando acalmá-los. O meu filho mais velho
costuma ter pesadelos que me obrigam a ir ter com ele, abraçá-lo e acordá-lo.
Mas agora, o meu coração diz-me que não pode ser um pesadelo. Os gritos são de
ambos, e vêm do quarto deles.
— A mamã está a ir!
Calma!
É então que ouço três
golpes surdos, e, logo a seguir, os gritos das crianças param. Começo a ouvir
gritos descontrolados, e só alguns momentos depois me apercebo que sou eu quem
assim grita. Passos pesados afastam-se em direção ao jardim. A janela ao fundo
do corredor está aberta, e as cortinas esvoaçam ao vento. Um urro de pânico sai-me
do peito.
— Nãaaaaaaaaaaaaao!
O meu coração galopa
desenfreadamente. Sinto as lágrimas quentes rolarem-me pela cara. Os soluços
engasgam-me e uma dor atroz no peito mal me deixa respirar. Parece que nunca
mais alcanço o quarto das crianças. Um outro urro sai-me da garganta e eu ouço-o
claramente a fazer eco dentro do meu peito.
Olho à minha volta, sem
perceber onde estou. São precisos alguns segundos para reconhecer a familiar e
tranquila atmosfera do meu quarto. A pouco e pouco acalmo-me. Verifico as horas
no telemóvel. Dez e vinte! O Eduardo há muito que se levantara. Que disparate!
Porque dormira eu até tão tarde? Acordara por volta das quatro e meia para
urinar, estivera bastante tempo acordada, acabara por adormecer e ter aquele
pesadelo absurdo! Tenho que telefonar ao Hugo e ao Sebastião. Preciso de me
certificar de que estão bem. Claro que nem lhes vou falar naquele pesadelo
tonto!
Desço as escadas, tão
incomodada como aliviada. Começo a preparar o meu pequeno-almoço. O ruído que
me chega do terraço atrai a minha atenção para a janela da cozinha. Vejo um
jovem desconhecido, a segurar um volume de telhas preso por um cordel. Só então
me lembro de que hoje vinham mudar o telhado. Chove nos quartos dos garotos, e,
como não fomos previdentes ao ponto de termos guardado algumas telhas quando
construímos a casa, temos que substituir todo o telhado. As fábricas de telhas
ganham um dinheirão com pessoas incautas. Devia ser proibido mudarem o encaixe
das telhas. Por meia dúzia de telhas, as pessoas são obrigadas a substituírem
todo o telhado. Antigamente, um telhado era para uma vida…Agora, tudo é
efémero!
Aproximo-me mais da
janela. De repente, os meus olhos poisam aterrados, num espetáculo
indescritível! O chão do terraço está pejado de destroços de ninhos, e ovos
esmagados lambuzam as palhas e as penas dos escombros, que ainda mantêm o seu
formato. Uma onda de uma raiva imensa começa a inundar-me. Sinto um calor no
rosto, e, por momentos fiquei literalmente cega. Abro a porta da cozinha, corro
para fora, a gritar:
— Assassinos! Que é que fizeram? Assassinos!
Assassinos!
O meu marido surge à
esquina da casa, fita-me alarmado, com um ar estranho, e agarra-me. Eu
debato-me, com os punhos cerrados, e continuo a gritar:
— Assassinos! Assassinos! Assassinos!
Ao mesmo tempo que
Eduardo grita o meu nome, dá-me duas bofetadas. Eu desato a soluçar
convulsivamente. Consigo vislumbrar o ar dos trabalhadores que, entretanto,
acorreram, paralisados pela surpresa. Eduardo conduz-me para dentro de casa.
Deita-me no sofá, enquanto eu descarrego a minha dor. Não tem palavras de
conforto para mim. Cobre-me com a manta do sofá, e deixa-me só. Acabo por
adormecer de exaustão. Quando acordo, são quatro horas da tarde.
O meu marido está lá fora,
sentado no terraço, com uma cerveja na mão. Conheço bem aquela sua pose. As
asas do nariz oscilam ritmicamente. Está zangado, muito zangado. No terraço já
não há vestígios dos ninhos. Aproximo-me. Calmamente, pergunto:
— Porque destruíram os ninhos?
Eduardo poisa a garrafa
que segurava na mão. Olha para mim, com
um ar acusador:
— Estás ciente do
ridículo a que me expuseste?
— Os ninhos…Porque destruíram os ninhos?
— Sónia!...O que é que se passou aqui?
— Isso pergunto eu!
Destruíram os ninhos, os ovos dos pássaros!...Eles confiaram em nós! Sabiam que
podiam vir todas as primaveras, construir aqui os seus ninhos e as suas
famílias, que estavam protegidos! E agora…
— Mas o que é que tu querias? Acorda, mulher!
Era preciso mexer nos ninhos, para mudar o telhado! Os ninhos estavam por
debaixo das telhas! Não tenho culpa que os trabalhadores destruíssem os ovos!
Mas, de qualquer maneira, os pássaros iam enjeitar os ovos, depois de lhes
terem tocado! O que me preocupa…
Eduardo respirou fundo,
focou qualquer ponto distante à sua frente. E continuou:
— O que me preocupa, é a
tua reação inexplicável! Parecias louca, ouviste? Louca! Uma reação
completamente desajustada à situação! Tive que mandar os homens embora!
Deves-me uma explicação!
Suspirei. Cansada.
Triste. Apercebi-me de que ele tinha razão.
— Desculpa. Mas agora… não posso.
Talvez…quando estiveres disposto a ouvir-me sem essa raiva…sem me julgares…
Quando estiveres disponível para me ouvires e te libertares dessa impressão de
que te coloquei mal perante os outros…neste momento…os outros são quem menos me
interessa. Estou muito cansada.
Avancei para o meu
quarto. Bebi um copo de água. Deitei-me. Não queria ouvir nada. Não queria pensar
em nada. Mas continuava a pensar nos pobres pássaros, que viram a sua família
destruída. Haviam de querer voltar para os seus ninhos, chocar os ovos, e não
havia ninhos, nem ovos…Esta primavera não haverá pássaros no meu jardim…E não
sei se haverá nas primaveras mais
próximas. Como se terão sentido eles, ao assistirem impotentes à
destruição dos seus lares, os ninhos, ao massacre dos seus filhos potenciais!
Foi então que me lembrei
do sonho! Já o tinha esquecido!
Levantei-me de novo, e
desci ao jardim, onde Eduardo continuava sentado no mesmo sítio onde o havia
deixado.
— Eduardo, quero
contar-te uma coisa. Um sonho. Ou melhor: um pesadelo que tive esta madrugada.
Eduardo ouviu-me, sem uma
palavra, sem um comentário. Quando terminei, ele abriu-me os braços,
acolhedores. Sentei-me no seu colo. Abraçou-me, longamente. Aninhei-me nos seus
braços, e ele beijou-me os cabelos. Ficámos assim, sem falar, durante alguns
minutos. Finalmente, ele perguntou:
— Não tens fome?
Sem comentários:
Enviar um comentário