Já só me faltava receber
a encarregada de educação da Raquel, uma adolescente problemática, amiga de
chamar a atenção, quezilenta e arrogante. Desaproveitava as grandes capacidades
que possuía, para ser a líder dos alunos malcomportados. Inteligentíssima, era
perita na arte da argumentação, entrando em duelos verbais com os professores
dos quais frequentemente saía vencedora, o que reforçava a sua posição entre os
seus colegas. Apesar disso, o seu aproveitamento escolar nunca estivera em
risco.
Quando levantei o olhar da
papelada, não vi a mãe da Raquel, mas um homem.
Apressou-se a estender-me
a mão, apresentou-se como sendo o pai da Raquel, explicando que a mãe, a
encarregada de educação, tinha ido de visita aos pais nos Açores, levando
consigo a filha mais nova, enquanto ele ficara com a mais velha.
Arrepiei-me quando o vi.
Se ainda tivesse dúvidas, elas desapareceram à medida que ele ia falando.
Todavia, não detetei qualquer indício de me ter reconhecido. Falava do assunto
da Raquel com a preocupação natural de quem tem uma filha adolescente
problemática a tentar concentrar sobre si todas as atenções. Ouvira a leitura
das participações dos professores, que eu lhe lera com voz trémula, e prometeu
que iria conversar com ela. Recebeu fleumaticamente, pareceu-me, as notas da
filha, assinou todas as fichas e demais papelada que eu lhe apresentei, dobrou
ao meio a folha da avaliação com um vinco, e guardou-a no bolso interior do
casaco. Era mais velho do que eu oito anos. Porém, estava bastante envelhecido,
e a diferença de idades parecia muito maior. Continuava magro, com sempre fora,
mas parecia arrastar consigo todo o peso do mundo. A mesma voz rouca e sensual
que tanto me perturbara, deixava-me agora indiferente.
Em tempos as nossas vidas
tocaram-se profundamente, numa roda de violência, paixão, perdão, gritos,
choros, equimoses no corpo e na alma.
Eu fora obrigada a fugir,
deixando para trás o meu emprego, e acabara por aceitar um lugar de professora
no Algarve. Soube que me procurara junto dos meus pais, que o avisaram que me
deixasse em paz se não queria estragar a vida dele e a deles.
A última vez que me
chegaram notícias, através da amiga comum que nos apresentara, já eu estava
casada com um amigo de infância, os meus três filhos já tinham nascido e eu
tinha regressado ao Norte. E era feliz.
Ele preparava-se para
casar com a mãe das duas filhas, numa altura em que a maior parte dos amigos da
sua geração estavam a começar a ser avós. Dissera à nossa amiga “ que já era tempo de assentar.” Só
depois do nascimento da filha mais nova lhe parecera oportuno assentar. Recordo
o sentimento de piedade que então me invadiu quando soube daquela notícia.
Piedade pela mulher, pois segundo vários tratados que então lera sobre
violência doméstica no lar e no namoro, um agressor dificilmente deixará de o
ser, pois qualquer situação que desequilibre o seu quotidiano, poderá despertar
a fera adormecida.
E agora ela ali estava,
na minha frente, ainda com o poder de me deixar nervosa e receosa. Ganhei alento,
afirmando para mim própria, com a convicção possível, que aquele farrapo não
poderia voltar a fazer-me mal. Tinha chegado o momento de resolver aquele
assunto pendente na minha vida, para que os pesadelos deixassem, de uma vez por
todas, de me atormentar. Necessitava de largar aquele fardo para prosseguir a
minha caminhada com mais leveza.
— E por agora é tudo! —
concluí, estendendo-lhe a mão.
Nesse momento olhei-o bem
de frente, e arrisquei, tentando demonstrar uma segurança que estava muito
longe de sentir.
— Já esqueci tudo e já perdoei. Siga a sua
vida em paz.
Ele correspondeu ao
aperto de mão, suportando o meu olhar sem pestanejar. Nada disse. Acompanhei-o
à porta da sala. Fiquei a vê-lo afastar-se, as costas curvadas, um ligeiro
arrastar da perna direita.
Quando chegou ao cimo das
escadas que o conduziriam ao piso inferior, voltou-se. Nos seus olhos
pareceu-me ver a humidade brilhante deixada pelo assalto de alguma lágrima. A
sua boca mexeu-se, sem que qualquer som dela saísse. Mas eu pude ler o que ela
dizia:
— Obrigado!
Voltou-se e lentamente
foi-se apagando do meu campo de visão, à medida que ia sendo engolido pelas
escadas.
A Raquel já não acabou o
terceiro período na escola. Foi transferida para os Açores.
Brutalmente capaz de ser real!!!!
ResponderEliminarBrutalmente capaz de ser real, sim! Mas é ficção.Quase tudo. Agora: o que é ficção, e o que é real? who knowse?
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