À Marimília foram sempre poupados os duros trabalhos do campo, demasiado
pesados para a sua humilde compleição. Mas desde novinha que se mostrou hábil a
preparar as refeições, a apurar os guisados, os assados, a escolher as ervas e
os temperos capazes de transformarem uma simples refeição em algo delicioso e
diferente, numa explosão de sabores irresistível e deliciosa. Das suas mãos
saiam os pratos mais apetitosos, aptos a satisfazerem os paladares mais
exigentes e apaziguarem os estômagos mais carentes.
Fez-se cozinheira. Era requisitada para festas, casamentos, batizados…
Mas era preciso comer todos os dias, não só nos dias de festa. Especializou-se
na confeção de enchidos. Dos arredores, e até mesmo de Lisboa, onde os
conterrâneos apregoavam os seus dotes, chegavam encomendas das suas
maravilhosas chouriças, morcelas, alheiras e farinheiras, que não tinham igual.
Em breve era ela a única fonte de rendimento, o homem da casa, já que o seu não
conseguia granjear o sustento, sempre doente, com aquela tosse cavernosa a
encher as noites de arranques e roncos aflitivos. Marimília cedo percebeu que a
única filha, a pequena Alice, nunca herdaria a sua profissão. Por mais que
tentasse introduzi-la nos segredos da cozinha, a pequena não mostrava gosto nem
jeito. Enjoavam-na os odores dos temperos, deixava esturricar os refogados, os
estufados resultavam enxaguados e sensaborões, as sopas ora salgadas ora
insonsas…
Nunca conseguiria sustentar-se, se ela não lhe encaminhasse os passos.
Que a pequena era bonita, disso não havia qualquer dúvida. E tinha qualquer
coisa, que nem ela saberia dizer bem o quê, talvez o olhar ingénuo, num corpo
que desabrochava bem provido de atrativos…Se as duas fossem espertas, esses
atributos poderiam conquistar-lhe um marido rico e uma boa vida…
Alice foi crescendo. A mãe ia-lhe alimentando a vaidade, e os luxos. A
rapariga até se julgaria rica, não fosse a imposição da mãe para ir trabalhar
na fábrica de lanifícios da aldeia, pois já tinha bom corpo para isso. Fez o
pedido ao sr. Antoninho, o dono da
fábrica. A rapariga aprendia bem, tinha uma letra bonita, e foi contratada para
ajudante do guarda-livros. O seu bom feitio, aliado a dois palmos de cara atraentes,
depressa conquistaram a atenção do patrão.
Quando o sr. Antoninho enviuvou, Marimília entendeu que o destino estava
a jogar a seu favor, e começou a conceber o plano. Foi sondando a sua Alice,
enchendo-lhe a cabeça de sonhos, e dando-lhe instruções precisas de atuação. A
rapariga insinuava-se cada vez mais, mas o patrão continuava mergulhado na sua
mágoa.
__ Tens que ser mais esperta, Alice! __dizia-lhe a mãe __Olha que não hão
de faltar por aí lambisgoias prontinhas para lhe deitar a mão!
__ Oh! Minha mãe! O pobre não tem olhos para ninguém, anda tristinho como
a noite!
__Pois sim, mas a tristeza não vai durar sempre, e quando acabar, tens
que estar lá, e ele perceber que te preocupas …
E Marimília fechava-se nos seus pensamentos, endrominando planos …
Até que um dia…
__Olha, pergunta lá ao teu patrão se gosta de chouriças…
A resposta veio, célere.
__ Adora, minha mãe!
__Pois então, quando vier o tal dia do mês, avisa-me!
__ O tal dia do mês?!
__ Sim, minha parva, as regras!...
Marimília acreditava que o caminho certo para chegar ao coração de um
homem era através do estômago, e, se ele se mostrasse renitente, havia sempre
outros truques para ajudar. Bastava uma gotinha da “história” de Alice, nem de
mais, nem de menos…apenas na conta certa. Resultava sempre.
Num sábado à tarde, Alice apresentou-se no escritório da fábrica, onde
tinha a certeza que iria encontrar o patrão. Uma cestinha forrada com um
paninho de linho bordado, onde não faltava uma boroa, uma garrafinha de vinho
tinto, outra de aguardente para assar a chouriça na pequena assadeira de barro.
O decote mais aberto que habitualmente, como que sem dar por isso, a deixar
entrever carnaduras virginais…
__ Para o patrão, um miminho só para o ver sorrir outra vez.
Antoninho comoveu-se, e quis partilhar com Alice a iguaria…Mas a rapariga
apenas aceitou um cantinho de boroa, para não fazer desfeita, já que comia
tantas chouriças, que, por vezes as enjoava…
Ao chegar a casa, a mãe esperava-a como o caçador espreita a sua presa…Alice
trazia no rosto um rubor prazenteiro, e um sorriso largo…
__ Então, ele comeu a chouriça?
__ Comeu, minha mãe, até chupou o baraço…
__Está no papo, filha!...O homem é teu, é teu…
E foi. Antoninho teve de vencer a resistência da mãe, da sogra, que com
ele cortou relações e exigiu que lhe fossem entregues os três netos.
Do casamento nasceram duas meninas. Mas, apesar da vida desafogada, das criadas que lhe poupavam o trabalho da casa,
Alice, agora Dona Alicinha, não foi feliz. Antoninho adoeceu, com uma doença
estranha, incurável, que lhe tomou conta do espírito e lhe chupou o corpo, uma
doença que o tornou instável, louco de ciúme, violento. Dona Alicinha ficou
viúva. Após uma querela interminável pela posse dos bens, pouco mais lhe restou
que a casa onde vivia, e onde Antoninho já vivera com a primeira mulher. Era
uma casa enorme, recheada com móveis luxuosos, tapetes orientais, porcelanas,
salvas e faqueiros de prata, bragal de linho bordado, colchas de rendas, sedas
e cetins. Dona Alicinha viu-se a braços com um casarão que não sabia como
manter. Valeu-lhe o espírito empreendedor da mãe, que, mais uma vez, veio em
seu auxílio. Instalou-se no casarão, ou melhor dizendo, na cozinha. Em poucos
dias a decisão estava tomada, e, após um mês para reorganização dos espaços, a
casa da Dona Alicinha abriu-se ao público para receber hóspedes.
Não tardou que a fama das ótimas instalações e comida primorosa da casa
da Dona Alicinha chegasse longe. Para isso contribuiu, certamente, a calorosa
anfitriã. Nunca ali faltavam os que procuravam repouso, consolo, ou refrigério
no colo e nos braços sempre generosos da Dona Alicinha, que a nenhum hóspede
negava os seus talentos.
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