O percurso do restaurante até casa foi doloroso e pareceu-lhe interminável.
Esforçou-se até ao limite para conter as lágrimas. Uma raiva surda
envenenava-a, e, quanto mais remoía, mais os insultos lhe cresciam no íntimo.
Insultos gritados no interior de si, e injetados nas suas veias, inundando-lhe
todas as fibras daquele veneno. “Cabra, cabra, cabra, grande vaca, grande vaca,
“gritava no seu interior.
Alfredo estacionou o carro à frente da garagem, ela abandonou o carro
precipitadamente, subiu a correr os degraus de granito que a conduziam até à
entrada, abriu a porta com nervosismo, e, mal se viu a salvo, um profundo grito
libertou-se das entranhas. Subiu as escadas em direção ao quarto, lançou a
carteira para longe, atirou-se para a cama, e chorou, chorou, chorou, batendo
com os pulsos na almofada. Logo atrás, o marido, perturbado, veio no seu
encalço.
__ Mas o que é que tu tens? Não te entendo! Francamente, essas mudanças
de humor…
__Desculpa, desculpa, não tem a ver contigo! Preciso de desabafar! __ foi
dizendo por entre as lágrimas.
__Não percebo por que estás assim! Não vi nada que justifique esse teu
estado!
__Mas eu vi. Vi e ouvi. Deixa-me estar, por favor! Se estou assim, é
porque lá no restaurante, tive que me conter para não me saírem certas palavras
da boca.
__Mas o que aconteceu no restaurante?
__A tua mãe…a tua mãe é má, má, má, má…
__ Olha se eu me puser a dizer o mesmo da tua, gostavas?
__Eu conheço os defeitos da minha mãe, e tenho abertura para lhe dizer o
que penso, e, às vezes, no calor da discussão, elevar a voz, e fica tudo bem…
Mas à tua, não lhe posso dizer o que sinto…Por isso estou assim. Deixa-me com
as minhas coisas, por favor!
__Mas esses alterações de humor…
__Por favor, já não posso chegar à minha casa, ao meu porto de abrigo, e
desabafar? Se não o posso fazer aqui, para onde vou? Sinto-me como uma panela
de pressão à qual é preciso tirar o vapor, para acalmar…
__Está bem, pronto, mas isso não me parece muito normal, não entendo…
__ Não espero que entendas, são conflitos de mulheres, de noras e sogras,
pronto, é isso, coisas de noras e sogras…
Ele saiu do quarto, enquanto ela desabava e se desfazia num mar salgado.
Passados uns minutos ele voltou. Circunspecto, e algo amuado, disse:
__Vou dar uma volta de mota.
Íris não respondeu. Também lhe apetecia. Fazia-lhe bem. Espairecia, e
aquela raiva sumia-se. Não! Ia ficar.
Ele trocou de roupa e saiu.
Começou, então, a passar em revista os acontecimentos no restaurante.
Tinha tudo corrido normalmente. Até as habituais trocas de palavras pouco
cordiais entre ela e o filho.
O Miguel pediu água gelada, quando era habitual pedirem água à
temperatura ambiente. Ela olhou para ele, bem nos olhos.
__A avó gosta de água gelada. Ela só bebe água gelada. Em casa também.
Íris não disse nada. Rodeou com as mãos o copo de água, na tentativa de o
tornar menos frio. Há já algum tempo que não bebia água gelada, desde que lera
sobre os benefícios da água morna, ou à
temperatura ambiente. E sentia-se bem com isso.
Pouco depois, também o marido observou.
__Detesto água gelada. Só gosto de água quente.
__Sais à tua tia Silvaninha _observou D. Ilda com um sorriso.
E o almoço foi correndo e a conversa fluindo. O Miguel muito solícito com
a avó, como sempre, servindo-a e mimando-a. A determinada altura falou-se num
primo que estava de férias na aldeia, aproveitando também para fazer férias dos
pais, que tinham ficado na cidade. Ìris observou que o rapaz tinha feito algumas
cadeiras do curso que retomara após alguns anos, que não sabia se já tinha
acabado, e que as férias seriam merecidas.
__Com curso ou sem curso, com aquela idade, muito dificilmente arranjará
trabalho, no momento atual! __comentou o
marido
__ Não interessa! Mas aproveita o tempo para fazer alguma coisa
proveitosa, e que acho que lhe faz bem à autoestima. __contrapôs ela.
Falou-se que o rapaz andava a fazer limpezas na casa da aldeia, para
receber as filhas, enquanto a ex-mulher ia de férias.
Mais uma vez, ela concordou. Era natural o rapaz querer agradar as
filhas.
Mas D. Ilda empunhou o seu aguilhão, fez um dos seus trejeitos
recorrentes, a boca num arco com os cantos descaídos, desdenhosos:
__Coitado! A mãe não o soube educar, e ele também não sabe educar as
filhas!
__Certamente que ela o educou pensando que fazia o melhor. Os pais amam
os filhos incondicionalmente, e fazem sempre o que julgam ser o melhor para
eles_ ripostou Íris
Foi então que a grande educadora, atirou, dirigindo-se à nora:
__ Então porque é que a menina e o seu filho estão sempre a discutir ?
A cabra não podia ter atingido ponto mais sensível. Essa era uma grande
mágoa que ela transportava, agora já sem doer tanto, mas que aquela mulher má o
dissesse como se fosse por inépcia sua relativamente à educação do filho, isso
não lho admitia, isso não!
Respondeu-lhe que isso era verdade, sim, mas que nunca admitiria que
alguém o ofendesse na sua frente, porque o amava incondicionalmente, e era uma
leoa a defendê-lo.
Mas não foi além disso. Dona Ilda não iria entender. Era uma ignorante
emocional. A conversa prosseguiu, sem a sua participação. Sentiu uma onda de
calor subir-lhe ao rosto. Pressentiu que se ia desfazer em lágrimas. Respirou
fundo, apertou o nariz, e a sensação passou.
Ainda bem que lhe não respondeu.
Não valia a pena responder a esta mulherzinha má, sacana, cabra, cabra, cabra,
que educou os filhos debaixo da pedagogia do terror, humilhação e chicote, que
partia para férias deixando-os entregues a si próprios, que foi sempre fria e
incapaz de lhes dar carinho.
Gostava de lhe ter dito duas verdades. Mas não disse. Gostava de lhe ter
dito que ela, a sogra, tinha uns filhos
de ouro que não mereceu, que, se eles eram extraordinariamente respeitosos para
com ela_ coisa que ela não era com eles, a quem estava sempre a desvalorizar, __
era porque eles, felizmente, tinham o bom feitio do bom do seu marido, que
nunca lhes tocara e os enchera de mimos. Que ele, o marido e pai dos seus
filhos, era também o pai invejado por todos os miúdos do bairro, e ela era uma
megera que ninguém gostaria de ter por mãe. Que agora, depois de velha e eles
adultos, chantageava os filhos para continuarem a gravitar à volta dela, que
acorriam a sua casa mal ela se lamuriava. Que isso acontecia também porque eles
tinham mulheres compreensivas, que os deixavam à vontade para continuarem a
mimá-la, como sempre fora.
Que ela e o filho discutiam, sim. Que muitas vezes, depois de terem
discutido, ela sentia um misto de mágoa e orgulho; mágoa pela incapacidade de
ambos manterem uma conversa sem se exaltarem, orgulho por ele ser detentor de
uma capacidade de argumentação que ela não tivera a oportunidade de aprender
nem desenvolver.
Que ela e o filho discutiam, sim, por vezes demasiado energicamente para
o seu gosto, mas porque o educara no sentido de ser uma pessoa sem medo, que
podia expressar livremente o que quisesse, e que o podia fazer com ela, sempre,
sem que deixasse de o amar por isso, ao contrário da megera, que os educou hipocritamente
para não dizerem o que pensam, numa moral do parece mal, regida por princípios
caducos em que os mais velhos, principalmente os pais, têm sempre razão, e não
se podem defrontar.
Mas que a ela, a dona Ilda, os filhos lhe não respondiam porque os
argumentos dela eram falsos, desonestos, e não valia a pena desperdiçar
energias encetando uma conversa que nunca seria saudável, batalhando os argumentos dela com os apresentados por eles…
Por isso, ainda hoje, são incapazes de a confrontar e calam-se, muito embora
não concordem com aquilo que ela diz, nem com aquela moral decrépita Calam-se,
para a pouparem à humilhação de terem que desmontar as suas desculpas, os seus
argumentos desonestos, falsos, incoerentes, facilmente desarmáveis, e a verem
reduzida a uma mentirosa manipuladora. Calam-se, porque, apesar de terem sido
educados por ela, a amam, e são intrinsecamente bons, pois foram herdar o
carácter ao pai (graças a Deus).
Mas isto nunca lhe dirá. Porque ela, a sogra, nunca o compreenderia. E
porque ela, a nora, é muito melhor do que ela.
E porque depois deste desabafo, a raiva já se foi.